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segunda-feira, dezembro 17, 2012

Síntese do Niilismo

“O niilismo está à porta: de onde nos vem esse mais sinistro de todos os hóspedes? - Ponto de partida: é um erro remeter a 'estados de inteligência social' ou 'degeneração filosófica' ou até mesmo à corrupção, como causa do niilismo. Estamos no mais decente, no mais compassivo dos tempos. Indigência, indigência psíquica, física, intelectual, não é em si capaz, de modo nenhum, de produzir niilismo (isto é, a radical recusa de valor, sentido, desejabilidade). Essas indigências permitem ainda interpretações bem diferentes. Mas: em uma interpretação bem determinada, na interpretação moral-cristã, reside o niilismo.” NIETZCHE. O Niilismo _______ A palavra Niilismo (do latim nihil, nada) surge como expressão, na literatura russa “Отцы и дети- Pais e Filhos” De Ivan Turgueniev. Contudo é Dostoievski, que a utiliza para definir o homem como um negador de valores supremos, no entanto na filosofia, Nietzsche, em “A vontade de poder”, pergunta: “Que significa o niilismo?” E responde: “Que os valores supremos estão perdendo o seu valor”. Para Nietzsche, É a negação de uma acepção suprema na expectativa de um significado maior e metafísico para a vida; opondo-se à moral cristã, nega que a vida deva ser conduzida por qualquer tipo de padrão moral tendo em vista um mundo superior. Em “A gaia ciência”, ele descreve o niilismo como “a desconfiança de que há uma oposição entre o mundo em que até há pouco estávamos em casa com nossas venerações. Aqui ele duvida do que no mundo se tem como legitimação na ordem dos valores que orientam o ser humano no sentido de valor ultimo. E ainda em gaia da ciência ele expõe: [...] e outro mundo em que somos nós mesmos: desconfiança inexorável, radical, profundíssima [...] que poderia colocar a próxima geração ante a terrível alternativa: ou vocês abolem as suas venerações ou – a si próprios! A segunda opção seria o niilismo – mas não seria a primeira também niilismo?” Nesse sentido, o niilismo é, a desconfiança e a negação dos valores afirmados como absolutos.

Contudo, o niilismo em condição psicológica pode incidir em três condições, sendo que a primeira se dá ao se procurar um sentido em todo o acontecer que não está contido nele, e nessa procura o animo pode perder o sentido, ou seja, o niilismo faz perceber que todo nosso esforço de vida é “em vão”. A segunda condição se dá quando o homem se põe sob uma totalidade, que alcança uma condição de monismo onde consegue se libertar se tornando senhor de si mesmo, eliminando a necessidade de venerar e divinizar algo. E por fim, após passar por essas duas fases resta como subterfúgio ao homem censurar o mundo do vir-a-ser como engano, e inventar um mundo que esteja para além dele (Transcendente). Todavia, tão logo esse mundo seja instituído, o homem compreende que o fez por mera necessidade psicológica e que não possui direito a ele, e a partir daí o homem se depara na terceira condição do niilismo, que leva o homem a total descrença em um mundo metafísico, levando-o a aceitar a realidade do vir-a-ser como única realidade e impedindo a si a crença em qualquer via dissimulada que o leve a ultra mundos e falsas divindades, o homem então passa a não mais suportar esse mundo, já que descobre que não se pode negá-lo.
Como conceito filosófico faz observar os mais diferentes domínios do mundo contemporâneo em uma ótica de desconfiança. Em si é a desvalorização da supremacia dos valores, a duvida da verdade e a morte do sentido soberano. Os valores habituais são colocados em xeque e os princípios de verdade última e absoluta fica sem seu valor. Agora o novo deve ser buscado.Tudo é sacudido, posto radicalmente em discussão. E conclui Nietzsche “A superfície, antes congelada, As verdades e os valores tradicionais estão sob a desconfiança e sem afetação de valor ultimo e torna-se complexo prosseguir para uma verdade que dê ao ser humano uma segurança de fim. Agora está presente a ausência de um desígnio verdadeiro e ultimo e de resposta ao “porquê”. Copyright André Assis. Todos os direitos reservados.

terça-feira, dezembro 11, 2012

Cogitando com Pathos.


Não quero refletir a vida apenas na ótica da lógica sistemática, senão ficaríamos numa interminável dissertação melancólica e pessimista.Nesse caso concordo coma as palavras de Antoine de Saint-Exupéry Autor do Pequeno Príncipe: “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”. Quero pensar a vida com o coração. Concordo com Blaise Pascal (1623-1662) que disse: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Então é com o sentimento de fineza como Pascal colocou, quero aqui refletir a vida e do modo como degusto o viver a vida. Vejo o prazer de viver a vida em muitas situações. Permita-me expor, por exemplo, um caso muito pessoal, na ocasião em que vi os nascimentos de meus filhos André (1989) e Andressa (1991) a vida para mim sorriu com forte emoção me oferecendo uma explosão de exultação. Tenho satisfação pela vida quando vejo pessoas que se mobilizam em solidariedade por outras que vivem necessitadas. Sinto correspondência pela vida, quando vejo a capacidade que os humanos possuem de expressar sentimentos com atos fraternos e de reciprocidade. Como foi o exemplo de Betinho o nosso inesquecível Herbert de Souza; que não mediu forças e conseqüências (mesmo morrendo) para ser instrumento de vida para outros na mobilização nacional de combate ao mais algoz inimigo do ser humano, a fome. Usando a palavra “Quem tem fome tem presa”. A vida mostra ser grande e nobre quando ela nos oferta os recursos naturais para a nossa sobrevivência. Ela mesma argumenta conosco mostrando o seu milagre de fazer vir ao mundo uma criança, de fazer brilhar a luz do sol, do ar que respiramos, da chuva que cai regando a terra e da comunhão com tudo que existe.
Senhora e venerável vida, eis minha prece: “És bela, formosa, preciosa. Que nossos lábios te bendigam, e que jamais caiamos na tentação de sermos ingratos a ti; porque és gentil, bendita e benfeitora te todos é de Deus um grande dom". Viver são aqueles momentos de felicidade ou os momentos de tristeza. Viver é sonhar, é ter fome, sede, é sentir canseira e suar, é ver, escutar, apalpar é o cheiro da terra molhada. É feita dos momentos de erro e de acerto; de dúvida e de certeza; Das tentativas e das desistências; do arrependimento e da compunção; É a coragem e o medo; e a emoção e a lagrima; é vento no cabelo, é a constituição biológica, é a química do sangue nas artérias e coração batendo dentro do peito e fazer amor. É nascer, crescer, morrer, ser lembrado ou cair no esquecimento. Ou diluir na poeira cósmica como disse Darci Ribeiro. É dormir, acordar, estudar, trabalhar, brincar, ir vir, ter e não ter, e casar, ter filhos ou não. É o aqui e o agora, é sentir saudade é ter religião, é fé ou incredulidade. É Bondade, maldade ser amado ou detestado é tempo, água, fogo, terra ar. É Cantar, dançar, rir, chorar é ter amigos é ser livre e fantasiar e tomar cerveja com os amigos ou está só.
Inclui, excluir, Possuir, biografia, nome, família é ter um lar é ter uma pátria. A vida está em forma de movimento, possuindo passado presente e futuro com uma dinâmica desafiadora de sua própria construção histórica e verdadeira. Ela tem também relações, com o universo, que também é vivo e em plena evolução e por meio dele nos relacionamos com o Criador da vida. Mesmo que encontremos certas definições ou não, para o que seja o mistério da vida, uma coisa é fato. Ela sempre nos causará fascínio e será sempre a infinita, querida e desejada se fazendo e acontecendo com todas as suas manifestações, e sempre amada. Continuamente haverá quem se dedique ao desafio de refletir o sentido da vida, patrocinados pelo amor à própria vida. Entretanto o importante é fazermos da vida algo significativo e vivê-la de modo que vala apena de modo que ao envelhecer ou já perto da morte possamos ter o prazer de dizer VIVI A VIDA. Vivamos a nossa existência, sempre de modo licito e prazeroso com todos os seres
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segunda-feira, dezembro 10, 2012

Morte Aprimoradora da Vida


A busca pela felicidade e a superação da morte são duas questões perseguidas pelo ser humano. Cabe aqui fazer menção da funcionalidade da religião que de modo relevante trabalha a questão da superação da morte nas vias da fé de um modo proeminente considerável para a esperança humana. Entretanto, a questão da morte e de como sobrepujá-la é um anelo da própria essência humana que quer justificavelmente a imortalidade. A sede utópica pela imortalidade sempre será um desejo de perseguição humana. Morte é uma realidade experimental que diariamente nos acerca chegando de modo surpreendente e inesperado envolvendo aqueles que nos cercam. Para o ser humano a morte será sempre trágica, bárbara e impiedosa. Ela é algo que experimentamos com outros que morrem. No nosso caso, ao morrermos, não estaremos conscientes de sua participação; apenas sabemos que dela um dia vamos nos tornar partícipes. A morte implica num mistério de indicação da própria vida. Pois, a vida se nutre da morte. Isso porque a morte faz parte do próprio contexto existencial dos seres.
A vida investe na morte e a morte germina da vida, para que seja ordinariamente vida. Porque a gênese da vida não é aqui no tempo e espaço ela apenas tem sua movimentação no aqui e agora, não findando cá, ela é eternal, e segue seu modo misterioso de ser. A morte em si, é uma razão pra se estimar mais a vida. Para que a vida com a sua curta passagem possa ser vista com generosidade, profundidade, reciprocidade e repleta de sentido e reverência. Morrer é em si certeza da vida e de doação da própria vida. A morte é um começo do sem fim e está na agenda de todo ser humano como única e universal certeza aplicada a todos os portadores da vida.
Ela é a única via para o grande mistério. Sendo assim nos apercebemos que o aqui e agora, se reveste de uma proveitosa estrutura do ser quanto existência continuada pós morte. Na morte também está individuação de cada pessoa ela é um ato de intima singularidade humana, porque mesmo na morte está a presença do sujeito quanto ser. A morte e uma disposição da vida. Não é o cessar de uma existência, mais uma possibilidade de transposição para outro meio de vida. Pois a morte é a extensão da vida; e aqui entra a ação da fé e da transcendência. Morrer no conceito da fé é viver. Viver sem fé é em si a própria condenação a morte. “Porque na linguagem humana a morte é fim de tudo”. Soren Kierkegaard. Mas para a fé a morte é confirmação de vida é garantia de entrada e de continuidade na eternidade. Para uns certeza de ressurreição, para outros é evolução reencarnacionista. Seja como for, quem ama a vida não vive amedrontado com a morte. Pois ela é uma aliada da vida e o passaporte de encontro com o Autor da vida. Por esta causa, São Francisco de Assis (1182-1226) chamou-a romanticamente de “irmã morte”. Na tradição cristã, a morte, é o acesso que fará vê e viver em eterna plenitude e comunhão com o grande Pai e Mãe de todos, Deus.
O problema é que não sabemos vê quão valorosa é a morte. Mais o valor da vida é inestimável. Morte e vida, sempre conflitando, e guerreando. Mas, acabam amistosas, e ambas ajudam os humanos. Todos os humanos precisam da morte como precisam da vida. Sem a relação morte e vida não existe o ser humano. Por isso os humanos em vida recebem o epíteto de mortais. Os humanos sonham com a imortalidade para terem sempre a vida. Vida e morte, morte e vida se fazem amigas para o proveito da família humana. A Morte é componente do próprio Ser Humano, bem como ser humano é membro da própria beleza da vida , e é da vida que se entra na morte.
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Conflito Um Benfeitor


“O que foi será o que se fez se tornará a fazer: nada há de novidade debaixo do sol”. Eclesiastes 1,9. __________Hoje tudo foi repetitivo, não houve nada de novo. O que aconteceu, aconteceu como todos os dias ocorrem. Sem novidade. As mesmas coisas se deram sem que pudesse se dizer isso é inovação. Salomão (ou ao menos é atribuído a ele a autoria) é que colocou essa questão metafísica e um tanto Niilista no livro de Eclesiastes. Falamos da vida; esse ciclo repetitivo. Para uns ela é frustração, decepção, abalo. Para outros, celebração, alegria, louvor, emoção, prazer, realização. Para uns é enfretamentos sucedidos por conflitos pertinentes. Mais quem não tem ou nunca teve conflitos, Quem nunca conflitou? Eu vos pergunto quem nunca conflitou? Os repetíeis os quadrúpedes, os minerais os átomos as aves as estrelas esses nunca conflitaram, porque eles apenas existem. Nós conflitamos porque ex-istimos, ou seja, apenas o gênero humano é exclusivo na arte de sair de si mesmo pensando além da sua realidade circunscrita. É o único que ao ver as estrelas pode dizer o que está alem delas? Ele é um ser transcendente . Só ele é antrophos, único no oficio de refletir de se emocionar de explodir em alegria, ou lamentar por algo que lhe angustiar ou lhe enraivece. E desconhecido que algas marinhas ou insetos saibam criar arte barroca. Ou esculpir seus semelhantes em pedra. Não podem escrever o que pensam Apenas o homo sapiens possuiu capacidade de buscar entender seu “eu” e o seu universo. É o único com capacidade de transcendência. Também é impar para questionar, questiona tudo. Isso porque existência lhe propõe estes desafios Sua proposta para refletir, e questionar ante os imensos desafios do mistério da vida, é que o torna conflitante. Ele conflita e se angustia porque é um “eu”. “O eu é uma relação que não estabelece com qualquer coisa de alheio a si , mas apenas consigo mesmo.” Soren Kierkegaard. Um “eu” que quando olha para si, se vê existindo entre o temporal e o eternal. E que se volta para si mesmo buscando sua essência. Por isso a vida é conflitante e quem não conflita desconhece sua plena humanidade e ignora o seu direito de ser gente só gente conflita. Como sou gente me aprazo em conflitar. Os conflitos podem ser frutíferos eles suscitam produtividade, eles caracterizam nossa humanidade, ratos, papagaios, macacos não conflitam. Eis ai a configuração humana a capacidade de por diante de si questões internas e externas, que o fazem julgar ponderar, confrontar e concluir e chegar ao conflito. Nós mesmos nos perguntamos e respondemos a nos mesmos, e nos fazemos novas perguntas, daí indagações vão e vem e como num interminável labirinto procuramos compreender os fatos o mundo e o além do concreto. Esses momentos de conflitos são em si patrocinadores para uma ação de incursão para dentro de nos mesmos. O conflito gera experiência para nossa própria humanidade e produz uma consciência que conduz a um apreço de influxo e fluxo de decisão da vida. As grandes decisões pondem ser urdidos de grandes conflitos que nos induz a tomar as decisões certas por isso os conflitos podem ser benevolentes ao ser humano. Copyright André Assis. Todos os direitos reservados.

quinta-feira, dezembro 06, 2012

PENSAR CRITICAMENTE

Eis que o pensador saiu para pensar. E o pensador se, pois a pensar. O pensador de si para si, pensou e aproximou-se dele o próprio ato de pensar. O pensador se aconchegou aos seus próprios pensamentos. Pensamentos e pensador um só se fazem no ato de pensar. Pensamento e pensador se ajustam e um no outro se ajustam. O pensador deu ao pensamento liberdade para pensar o pensamento de livre vontade. Pensamento pensante é que o pensador pensa. O pensador vive do seu pensamento pensante e não do pensamento manipulado. Pensante é o pensamento do pensador. O pensador pensa criticamente. Critico é o pensador ele duvida das certezas. Ele questiona a verdade pronta. O pensador questiona o quem vem pronto de cima para baixo. O pensador não se fecha em velhas estruturas do pensar o óbvio. Pensar é ato da liberdade não pode haver a manipulação do pensamento. Sistemas inteiros manipulam o pensamento humano. Os dogmas com seus preceitos manuseiam o pensar humano. Os ritos podem manipular o pensar. A política pode ardilosamente encabrestar o pensar e ofuscar a o direito humano da sua liberdade pensante. Os meios de comunicação podem canalizar o ato de pensar de modo manipulador, castrador e anestesiador... A heraquização militar pode matar o ato de pensar de seus subalternos. Seguimentos de ensino podem assassinar o pensamento dos educandos. Estruturas de poder podem tentar reprimir e esterilizar o pensar livre e critico. Pensar com liberdade é um direito da alma humana. O ser humano pode ser escravizado, podem mutilar membros de seu corpo, podem prendê-lo em cadeias, mas ninguém pode lhe tirar o maior direito que lhe confere a inserção e liberdade de vida O PENSAR. Ninguém pode mandar em nossos pensamentos e nos tirar esse direito. Jamais adie o ato de pensar o pensar critico e por conta própria. Nem se canse o fazê-lo. Na ação de pensar existe ainda o criar conceitos e não apenas repetir pensamentos prontos e transmitir conceitos. Somos capazes de gerar pensamentos diferentes do comum e habitual. Pensar é também reivindicar, pensar é bradar o ato de liberdade que nos pertence... A atitude critica questionadora e não conformada como as coisas óbvias e prontas são riquezas bem como patrimônios que nos pertence, quais nunca devemos abrir mão pelo ato de pensar e expressar. Morrer em vida é não se dar ao prazer de pensar de modo próprio e critico. A expressão e a valorização do pensamento livre e critico é humanização. PENSAR criticamente e com liberdade é conferir a nós mesmos o prazer e felicidade de ser HUMANO, do Prazer de ser GENTE. René Descartes está certo. PENSO LOGO EXISTO.
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terça-feira, novembro 27, 2012

POEMAS DE WALT WHITMAN


Walt Whitman (1819 – 1892) considerado, um dos maiores poetas dos EUA – quando não o maior poeta – bem como de toda a literatura moderna ocidental. É lembrado, também como o inventor do verso livre. _UMA HORA PARA A LOUCURA E A ALEGRIA_ Uma hora para a loucura e a alegria! Ó furiosos! Oh, não me confinem! (O que é isto que me liberta assim nas tempestades? Que significam meus gritos em meio aos relâmpagos e aos ventos rugidores?) Oh, beber os delírios místicos mais fundamente que qualquer outro homem! Ó dolências selvagens e ternas! (Recomendo-as a vocês, minhas crianças, Dou-as a vocês, como razões, ó noivo e noiva!) Oh, me entregar a vocês, quem quer que sejam vocês, e vocês se entregarem a mim, num desafio ao mundo! Oh, retornar ao Paraíso! Ó acanhados e femininos! Oh, puxar vocês para mim, e plantar em vocês pela primeira vez os lábios de um homem decidido. Oh, o quebra-cabeça, o nó de três voltas, o poço fundo e escuro – tudo isso a se desatar e a se iluminar! Oh, precipitar-me onde finalmente haverá espaço e ar o bastante! Ser absolvido de laços e convenções prévias, eu dos meus e vocês dos seus! Encontrar uma nova relação – desinteressada – com o que há de melhor na Natureza! Tirar da boca a mordaça! Ter hoje ou todos os dias o sentimento de que sou suficiente como sou! Oh, qualquer coisa ainda não experimentada! Qualquer coisa em transe! Escapar totalmente aos grilhões e âncoras dos outros! Libertar-me! Amar livremente! Arremeter perigosa e imprudentemente! Cortejar a destruição com zombarias e convites! Ascender, galgar os céus do amor que foi indicado para mim! Subir até lá com minha alma inebriada! Perder-me, se preciso for! Alimentar o resto da vida com uma hora de completude e liberdade! Com uma hora breve de loucura e alegria. _MILAGRES_ Ora, quem acha que um milagre é alguma coisa de especial? Por mim, de nada sei que não sejam milagres: ou ande eu pelas ruas de Manhattan, ou erga a vista sobre os telhados na direcção do céu, ou pise com os pés descalços bem na franja das águas pela praia, ou fale durante o dia com uma pessoa a quem amo, ou vá de noite para a cama com uma pessoa a quem /amo, ou à mesa tome assento para jantar com os outros, ou olhe os desconhecidos na carruagem de frente para mim, ou siga as abelhas atarefadas junto à colmeia antes do meio-dia de verão ou animais pastando na campina ou passarinhos ou a maravilha dos insectos no ar, ou a maravilha de um pôr-de-sol ou das estrelas cintilando tão quietas e brilhantes, ou o estranho contorno delicado e leve da lua nova na primavera, essas e outras coisas, uma e todas — para mim são milagres, umas ligadas às outras ainda que cada uma bem distinta e no seu próprio lugar. Cada momento de luz ou de treva é para mim um milagre, milagre cada polegada cúbica de espaço, cada metro quadrado da superfície da terra por milagre se estende, cada pé do interior está apinhado de milagres. O mar é para mim um milagre sem fim: os peixes nadando, as pedras, o movimento das ondas, os navios que vão com homens dentro — existirão milagres mais estranhos? Walt Whitman, in "Leaves of Grass" _CIDADES DE ORGIAS_ Cidade de orgias, passarelas e gozos! Cidade em quem vivi e cantei em seu meio, que um dia farei ilustre, Não os seus pajens – não são seus tableaux inconstantes, seus espetáculos que me compensam; Não as suas fileiras intermináveis de casas – não os navios nos cais, Não suas procissões nas ruas, nem suas claras janelas, com suas mercadorias; Nem dialogar com pessoas instruídas, ou trazer a minha parte na festa ou banquete; Não isso – mas, enquanto passo, Ó, Manhattan! seu relâmpago frequente e ligeiro de olhos que me oferecem amor, Que oferecem resposta ao meu próprio – estes me compensam; Amantes, contínuos amantes, apenas, me compensam. Ao jardim, o mundo Ao jardim, o mundo, renovado em ascensão, Parceiros potentes, filhas, filhos, em prelúdio, O amor, a vida de seus corpos, ser e sentido, Curioso, contemple aqui minha ressurreição, após o sono; Os ciclos em revolução, em seu amplo movimento, aqui me trouxeram outra vez, Amoroso, maduro – tudo belo para mim – tudo maravilhoso; Meus membros, e o fogo trêmulo que folga neles, pelos mais maravilhosos motivos; Existindo, eu perscruto e penetro ainda, Contente com o presente – contente com o passado, Ao meu lado, ou atrás de mim, Eva me seguindo, Ou à frente, e eu a segui-la do mesmo jeito. _ESTA É A FORMA DE FÊMEA_ Esta é a forma fêmea: dos pés à cabeça dela exala um halo divino, ela atrai com ardente e irrecusável poder de atração, eu me sinto sugado pelo seu respirar como se eu não fosse mais que um indefeso vapor e, a não ser ela e eu, tudo se põe de lado — artes, letras, tempos, religiões, o que na terra é sólido e visível, e o que do céu se esperava e do inferno se temia, tudo termina: estranhos filamentos e renovos incontroláveis vêm à tona dela, e a acção correspondente é igualmente incontrolável; cabelos, peitos, quadris, curvas de pernas, displicentes mãos caindo todas difusas, e as minhas também difusas, maré de influxo e influxo de maré, carne de amor a inturgescer de dor deliciosamente, inesgotáveis jactos límpidos de amor quentes e enormes, trémula geléia de amor, alucinado sopro e sumo em delírio; noite de amor de noivo certa e maciamente laborando no amanhecer prostrado, a ondular para o presto e proveitoso dia, perdida na separação do dia de carne doce e envolvente. Eis o núcleo — depois vem a criança nascida de mulher, vem o homem nascido de mulher; eis o banho de origem, a emergência do pequeno e do grande, e de novo a saída. Não se envergonhem, mulheres: é de vocês o privilégio de conterem os outros e darem saída aos outros — vocês são os portões do corpo e são os portões da alma. A fêmea contém todas as qualidades e a graça de as temperar, está no lugar dela e movimenta-se em perfeito equilíbrio, ela é todas as coisas devidamente veladas, é ao mesmo tempo passiva e activa, e está no mundo para dar ao mundo tanto filhos como filhas, tanto filhas como filhos. Assim como na Natureza eu vejo minha alma refletida, assim como através de um nevoeiro, eu vejo Uma de indizível plenitude e beleza e saúde, com a cabeça inclinada e os braços cruzados sobre o peito — a Fêmea eu vejo.

Sustentabilidade e cuidado: um caminho a seguir.

Texto de Leonardo Boff extraído de seu site-http://leonardoboff.wordpress.com/2011/06/16/sustentabilidade-e-cuidado-um-caminho-a-seguir/
Autor de “O Cuidado necessário”: na vida, na ecologia, na saúde, na educação, a sair pela Vozes. ___________________________________________________________________________ Há muitos anos, venho trabalhando sobre a crise de civilização que se abateu perigosamente sobre a humanidade. Não me contentei com a análise estrutural de suas causas, mas, através de inúmeros escritos, tratei de trabalhar positivamente as saídas possíveis em termos de valores e princípios que confiram real sustentatibilidade ao mundo que deverá vir. Ajudou-me muito, minha participação na elaboração da Carta da Terra, a meu ver, um dos documentos mais inspiradores para a presente crise. Esta afirma: ”o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal”. Dois valores, entre outros, considero axiais, para esse novo começo: a sustentabilidade e o cuidado. A sustentabilidade, já abordada no artigo anterior, significa o uso racional dos recursos escassos da Terra, sem prejudicar o capital natural, mantido em condições de sua reprodução, em vista ainda ao atendimento das necessidades das gerações futuras que também têm direito a um planeta habitável. Trata-se de uma diligência que envolve um tipo de economia respeitadora dos limites de cada ecossistema e da própria Terra, de uma sociedade que busca a equidade e a justiça social mundial e de um meio ambiente suficientemente preservado para atender as demandas humanas. Como se pode inferir, a sustentabilidade alcança a sociedade, a política, a cultura, a arte, a natureza, o planeta e a vida de cada pessoa. Fundamentalmente importa garantir as condições físico-químicas e ecológicas que sustentam a produção e a reprodução da vida e da civilização. O que, na verdade, estamos constatando, com clareza crescente, é que o nosso estilo de vida, hoje mundializado, não possui suficiente sustentabilidade. É demasiado hostil à vida e deixa de fora grande parte da humanidade. Reina uma perversa injustiça social mundial com suas terríveis seqüelas, fato geralmente esquecido quando se aborda o tema do aquecimento global. A outra categoria, tão importante quanto à da sustentabilidade, é o cuidado, sobre o qual temos escrito vários estudos. O cuidado representa uma relação amorosa, respeitosa e não agressiva para com a realidade e por isso não destrutiva. Ela pressupõe que os seres humanos são parte da natureza e membros da comunidade biótica e cósmica com a responsabilidade de protegê-la, regenerá-la e cuidá-la. Mais que uma técnica, o cuidado é uma arte, um paradigma novo de relacionamento para com a natureza, para com a Terra e para com os humanos. Se a sustentabilidade representa o lado mais objetivo, ambiental, econômico e social da gestão dos bens naturais e de sua distribuição, o cuidado denota mais seu lado subjetivo: as atitudes, os valores éticos e espirituais que acompanham todo esse processo sem os quais a própria sustentabilidade não acontece ou não se garante a médio e longo prazo. Sustentabilidade e cuidado devem ser assumidos conjuntamente para impedir que a crise se transforme em tragédia e para conferir eficácia às praticas que visam a fundar um novo paradigma de convivência ser-humano-vida-Terra. A crise atual, com as severas ameaças que globalmente pesam sobre todos, coloca uma impostergável indagação filosófica: que tipo de seres somos, ora capazes de depredar a natureza e de por em risco a própria sobrevivência como espécie e ora de cuidar e de responsabilizar-nos pelo futuro comum? Qual, enfim, é nosso lugar na Terra e qual é a nossa missão? Não seria a de sermos os guardiões e os cuidadores dessa herança sagrada que o Universo e Deus nos entregaram que é esse Planeta, vivo, que se autoregula, de cujo útero todos nós nascemos? É aqui que, novamente, se recorre ao cuidado como uma possível definição operativa e essencial do ser humano. Ele inclui certo modo de estar-no-mundo-com-os-outros e uma determinada práxis, preservadora da natureza. Não sem razão, uma tradição filosófica que nos vem da antiguidade e que culmina em Heidegger e em Winnicott defina a natureza do ser humano como um ser de cuidado. Sem o cuidado essencial ele não estaria aqui nem o mundo que o rodeia. Sustentabilidade e cuidado, juntos, nos mostram um caminho a seguir.

segunda-feira, novembro 19, 2012

PROTESTO DA ALMA

1- Mente e coração humanos; inquietos, complexos, clamorosos. Com direção e sem direção; com sonhos e decepções, que situação? Quem pode responder as Inquietudes e forças complexas de nossa dimensão misteriosa e interior? São Patrimonios da alma que se aflige, os conflitos e as Inquietações ? A felicidade é um aceno, um direito, uma propriedade ou visitante ilustre ? O ser Humano é apenas seu temporário ANFITRIÃO ? 2- Ó tu, que deste fôlego de vida a todos os viventes, Porque nos deu e permiti, um legado tão confuso, Com mistérios casuísticos que estruturam a existência? 3- ...Não é fácil nos condicionarmos em resignação, quando testemunhamos as dores às aflições mais profundas da alma .. Que prazer e louvor, têm isso tu que se nomeia a Causa não Causada ? 4- Até quando olharemos para ver todas as contradições e nos contentaremos com ausências de respostas efetivas? A resposta está na fé, no transcendente no subjetivo ? Isso cansa... 5- Que podes me dizer do pobre e ultrajado, humilhado em sua dignidade, Quando, até o direito de viver e de ser gente lhe é furtado? A incerteza da vida para eles lhes é talvez a única convicção que possuem. A fome, uma certeza, a esperança uma grande ilusão! Sonho, o que é isso para eles? Pesadelo, sim são suas vidas miseráveis. 6- A morte para essas pessoas parece vir mais rápida, por viverem uma exclusão que as faz sem direito a uma sobrevivência digna. 7- 8- No espiritual vem a solução ou está a reposta ? É o espírito que suscita o desejo insaciável da busca de nós mesmos para o encontro com o eixo e a causa Maior de nossa existência ? E com isso encontrar a segurança e a paz perseguida ? 9- Queremos seguridade para nos completarmos em nossa fonte originaria ? E Quem ela é ?
10- Então parece que há um CLAMOR ! Quem é o homem? Um ser complexo? Sim, mais que complexo! Misterioso em toda sua estrutura. Possui um infinito dentro de si que clama por um infinito maior. Até os dias de hoje procura se descobrir, por ter o desejo de definir a si mesmo. Copyright André Assis. Todos os direitos reservados.

segunda-feira, setembro 24, 2012

CREIO AO MEU MODO


"É a prova de uma mente inferior o desejar pensar como as massas ou como a maioria, somente porque a maioria é a maioria. A verdade não muda porque é, ou não é acreditada por uma maioria das pessoas".-Giordano Bruno- _________________ Existe algo errado inacabado o absurdo existe em toda parte. Onde está o perfeito? Questiono se existe perfeição onde ele está? As coisas parecem não ter sentido nem ter fundamento. Porque, às vezes, foge à fé naquele que é o Espírito de absoluta perfeição? O que é fé? Um recurso para se explicar o que não pode se explicado a luz da razão? Ela é uma saída para aquilo que não se tem certeza de algo que não se sabe ao certo? Se encontrares o sentido das coisas na fé, es um bem aventurado. Se entenderes pela fé, que o Perfeito é real, então, viveras por meio dele em fé, pois o profeta Hebreu diz o “Justo viverá da fé”. Não sou hipócrita para “crê por costume invertebrado” como disse Giordano Bruno E faço eco das palavras dele: "Se creio, tenho recompensa e se não creio, por que seria condenado? Estaria errado em não crê por costume ou por mera convenção? Que ninguém me obrigue ou me condene porque não quero crê". Porque os outros querem que eu creia? Quem tem que querer crê sou eu. Ninguém pode crer pelos outros. Contudo se creio isso basta. E Se não quero Crer e penso que sou sustentado sem crer? Crerei por minha própria convicção e não de outros. Crerei por mim. Inventei minha própria fé, a fé ao meu Jeito... Sim, eu creio, mas ao meu modo. Não creio no perfeito das religiões e nunca na maneira da fé religiosa. A fé religiosa pertence à própria religião e nunca ao indivíduo. Pode ser que o indivíduo tenha sua própria fé no contexto da religião. Contudo, as religiões se enganam e, é por isso que não quero crê do modo delas, pois são repetitivas e viciosas e Manietadoras. A fé que possuo é do meu modo. Eu a tenho, mas não do modo religioso institucionalizado e Pragmático. Já que eu posso crê me responsabilizo pelo que creio e como creio. E ninguém pode me julgar por tal direito que é meu. O DE CRER AO MEU MODO... Copyright André Assis. Todos os direitos reservados.

Pensar a Vida Traz Pesar.


Pensar a vida, diz Salomão “É uma tarefa que acaba sendo como que correr a trás do vento”. Concordo com Salomão, pensar a vida é uma ocupação que trás pesar. Quando refletimos a vida vamos-nos, desapontando, fatigando, angustiando e acabamos nos decepcionado ao percorrermos os nossos raciocínios e não obtemos respostas às questões problemáticas que a vida nos impõe. “pensar a vida trás pesar”. Ao olhar nas praças crianças abandonadas sujas e com fome; mendigos que utilizam jornais para se cobrirem nas calçadas em noite fria, conflito-me comigo mesmo. Diante dessas desventuras que conhecemos dentro da vida isso me deixa mal-humorado com a própria vida. Quando me lembro dos demônios que dizimaram milhões de judeus que além dos homens, incluía crianças, mulheres, e idosos nos campos de extermínio de Auschwitez, Belzec, Chelmno, Janov, Majdanek, Stuttof, e Treblinka, diante disso digo como Salomão, no livro de Eclesiastes “Detesto a vida”. Ao Enxergar nessa vida detentores de fortunas incalculáveis, grandes impérios mobilizados pelo poder econômico. Enquanto que outros muito mal possuem um par de chinelos para os pés. O sistema de acumulação favorece uma classe exclusiva dominante produzindo, consequentemente, outra classe: a dos espoliados e dos indigentes que lutam desesperadamente pela sua sobrevivência. Um grande abismo de separação existe entre os privilegiados e os desfavorecidos. Milhões e milhões são gastos com investimentos bélicos por nações que adotam a postura do terror querendo, a qualquer custo, o topo do poder mundial. Outros incontáveis milhões de dólares são consumidos com projetos de exploração espaciais. E por outro lado, humanos miseráveis são esquecidos morrendo de fome em toda parte do mundo. Que prazer tem a vida para as centenas de crianças que passam fome no Brasil na índia e em alguns países pobres da áfrica? E aquelas pessoas que sobrevivem de catar lixo que gosto tem a vida para elas? E as outras crianças, as quais lhes são furtadas o direito de estudarem e do laser para trabalharem precocemente para sobreviverem? O descaso aos idosos e as pessoas de baixa renda? O desprezo aos pobres? As barrigas vazias e as panelas desocupadas? Isso é vida? Não, não é vida é aflição “É morrer, pois amada não é, e verbo é sofrer”. Que virtude se tem em pensar o sentido da vida nessas circunstâncias funestas. Salomão faço coro contigo nestas Condições e digo detesto a vida quando desse jeito se coloca Vida, vida, porque te fazes assim? Onde está tua gentileza, porque no lugar da ternura, a rigidez? Da doçura o amargo?
E onde está o teu aconchego? E a elegeria dos que buscam felicidade? Tu a uns desprezas e a outros não? A uns concede que chorem e a outros credita alegrias? Os miseráveis pranteiam e os outros são protagonistas de muitas alegrias e das boas dádivas. Ó vida, estou cansado de vê teus equívocos. Para uns se faz traidora, e de outra benfeitora. Arrisco em dizer que nem tu sabes as coisas que fazes e quando fazes as coisas ignora o que fazes. Oh vida tu não es mais ingrata por que existe a fé à esperança e o amor e a solidariedade. São os Virtuosos dentro da vida que exercem a solidariedade que amenizam um pouco o impacto devastador dos que sofrem. Copyright André Assis. Todos os direitos reservados.

domingo, setembro 23, 2012

Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Resenha


A romper-se um repentino e inexplicável surto de cegueira, Saramago nos faz vê a desorganização e a superação dos valores fundamentais da sociedade, transformando seus personagens em animais egocêntricos na luta pela sobrevivência. No em saio sobre a Cegueira Saramago nos faz enxergar muito mais do que isso, nos faz ver a própria humanidade frente a uma condição de caos. Logo de inicio deparamo-nos com a exclamação de um personagem: "Estou cego” com objetividade e com um discurso coerente, vemos que os acontecimentos narrados prendam a atenção do leitor levando-nos quase para que dentro da narração. Vários personagens vão se tornando cegos. O autor omite o nome da cidade, não há datas e os seus personagens são anônimos, conhecidos apenas como "a mulher do médico", "o homem da venda preta", "a rapariga dos óculos escuros" ou "o cão das lágrimas". A narração de Saramago passa a ficar tão claro à imaginação do leitor, que é impossível não temer uma verdadeira epidemia, imaginarmos como agiriam as autoridades governamentais em uma situação como essa, como o medo faria vir à tona os instintos mais escondidos dos homens. Existe uma mulher que ainda consegue enxergar. Entre tantos cegos presos em um manicômio por ordem governamental, é a esposa do médico, que faz lembrar outra personagem de Saramago: Blimunda, de Memorial do Convento, que tem a capacidade de enxergar o interior das pessoas, mas nem por isso sentia-se privilegiada, pois algumas vezes tinha que ver aquilo que não queria. Do mesmo modo, a mulher do médico é a única que pode ver as belas e horrorosas imagens descritas pelo autor, seja o lindo banho de chuva das mulheres na varanda ou os cachorros que devoram o cadáver de um homem na rua. Ela não sabe se é abençoada ou amaldiçoada por poder enxergar em uma terra de cegos. Do mesmo modo, o velho da venda preta (apesar de antes da cegueira enxergar apenas com um dos olhos) narra o que acontece do lado de fora do manicômio, por meio das notícias do rádio e do que via quando ainda estava do lado de fora. É ele que abre os olhos do leitor para a realidade do mundo, o caos que se pode instalar a qualquer momento, as atitudes impensadas de quem está no poder tentando isolar o problema ao invés de estudá-lo. Regras são quebradas, pois ninguém mais vê quem está agindo errado; os mais fortes abusam do poder; e o instinto de sobrevivência vai tomando conta dos homens. Saramago prefere pelo anonimato das personagens, como uma maneira de universalizar a experiência, abrangendo todas as pessoas, todos os nomes. Ao fazê-lo somos levados para o universo ficcional e experimentamos a cada página a dolorosa trajetória das personagens do romance. A reação de muitos leitores, que se dizem incapazes de terminar de ler o livro, dada a sua crueza e contundência, é prova de que o autor atingiu o seu objetivo de inserir-nos no seu universo ficcional, muito embora muitos de nós ainda estejamos nos recusando a "atender" naquilo que nossos olhos nos mostram. O Ensaio sobre a cegueira é a alegoria de um autor que nos faz pensar "a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam". José Saramago nos dá, aqui, uma oportunidade de refletir a contemporaneidade tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos maiores visionários modernos. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago nos faz pensar diante da pressão dos tempos e do que se perdeu: "uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos"
Resumo Um dia normal na cidade. Os carros parados numa esquinas esperam o sinal mudar. A luz verde acende-se, mas um dos carros não se move. Em meio às buzinas enfurecidas e à gente que bate nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, formando duas palavras: "Estou cego". O homem dentro do carro esbraceja, grita, mas não consegue escapar da cegueira branca que inunda seus olhos. É uma cegueira diferente, luminosa, como se ele tivesse mergulhado de olhos abertos num "mar de leite". Apesar disso, seus olhos tem uma aparência normal. As pessoas o ajudam a sair do carro e ele, entre lágrimas, implora que alguém o leve para casa. Um homem oferece-se para ir dirigindo seu carro. Como não havia local disponível para estacionar na rua da cada do cego, ele desceu do carro e ficou esperando o homem, que estacionou numa rua transversal. Subiram até o apartamento, que ficava no 3º andar. O homem quis aguardar até que a mulher do cego chegasse, mas este, com medo daquele estranho, preferiu recusar a oferta. Quando a mulher chega e o marido lhe conta que está cego, ela custa a acreditar, depois se desespera e liga para o primeiro oftalmologista que encontra na lista telefônica, marcando uma consulta urgente. O cego aguarda em frente ao prédio enquanto sua mulher vai buscar o carro na rua em que ele disse estar estacionado, com sua própria chave, pois o homem que o levou para casa não lhe- entregou a chave. Ela volta com um táxi, pois aquela "boa alma" roubou-lhes o carro. Na sala de espera do consultório estava um velho com uma venda preta, um rapazinho estrábico e sua mãe, uma rapariga de óculos escuros e mais duas pessoas. Passaram o cego na frente dos outros pacientes e, depois de examiná-lo minuciosamente por duas vezes, o médico conclui que não há nada de errado com seus olhos; estavam aparentemente perfeitos. Pediu alguns exames mais detalhados e, quando saíram, ficou pensativo, nunca vira coisa parecida em toda sua vida. O sentimento de culpa foi tomando conta do ladrão do carro. Quando se ofereceu para ajudar o cego, ainda não tinha o roubo em mente; a ideia só lhe apareceu quando estava em direção à casa do cego. Sentia-se mal estando sentado no mesmo lugar onde um homem sadio acabara de cegar. Nervoso, o ladrão redobrou a atenção e começou a controlar o carro para que nunca tivesse que parar num sinal vermelho. Estava à beira de um ataque de nervos e o barracão para onde costumava levar os carros roubados ficava longe dali. Então, parou o carro, desceu para tomar um pouco de ar, andou um pouco e, de repente, cegou. Foi encontrado por um policial que o levou para casa, desta vez não por ter roubado, o policial não sabia disto, mas sim por não ser capaz de orientar-se sozinho. O caso da rapariga dos óculos escuros era simples, apenas uma conjuntivite. Quando saiu do consultório, já à noite, chamou um táxi, passou na farmácia e comprou o colírio que o médico lhe receitara. A bela rapariga dos óculos escuros era uma prostituta e tinha um encontro marcado num hotel aquela noite. Depois do explosivo encontro amoroso, ainda via tudo branco, mas não era por causa do êxtase que sentia, ela também cegara. Nua e aos gritos, a rapariga foi vestida às pressas e colocada para fora do hotel. Um policial extremamente grosseiro levou-a para a casa dos pais num táxi. Depois de atender todos os pacientes, o médico ligou para um amigo e falou sobre o caso. A princípio suspeitaram de uma agnosia ou amaurose, mesmo sabendo que ambas as doenças tratavam-se de cegueira negra, o oposto do que descrevia o cego. Resolveram marcar uma nova consulta para examinarem junto o paciente. Chegando a casa, o médico ficou até altas horas pesquisando sobre o assunto em seus livros. Quando resolveu guardá-los para ir se deitar, o médico cegou. Deitou-se devagar para que a mulher não notasse e passou a noite toda em claro, pensando que, como oftalmologista, deveria avisar as autoridades competentes sobre a "treva branca" altamente contagiosa que estava a se espalhar. Quando, na manhã seguinte, contou à sua mulher que estava cego, ela abraçou-o com força, apesar de ele ter tentado afastá-la por medo do contágio, preparou o café e ajudou-o a telefonar para as autoridades. Diante da grosseria com que fora tratado, resolveu avisar diretamente o diretor clínico de onde trabalhava e este se encarregaria de fazer os outros contatos. A essa altura, já tinham notícia da cegueira do rapazinho estrábico, da rapariga dos óculos escuros e do ladrão. O ministério pediu que ele arrumasse as malas, pois mandariam uma ambulância para buscá-lo, mas não avisaram para onde ele seria levado. Quando a ambulância chegou, a mulher ajudou o marido a acomodar-se, guardou as malas e sentou-se ao seu lado. O motorista da ambulância informou que só poderia levar o médico, mas a mulher disse que também teria que ser levada, pois acabara de cegar. O ministro teve a "brilhante idéia" de deixar todos os cegos e as pessoas que tiveram contato com eles de quarentena, uma quarentena diferente das outras, pois esta ninguém sabia o quanto poderia durar. O local escolhido foi um manicômio desativado. Havia duas alas: uma seria ocupada pelos cegos, e a outra, pelas pessoas que tiveram contato com eles. Conforme as pessoas da última ala fossem cegando, atravessariam o corredor e se instalariam na outra ala. Os primeiros a chegar ao manicômio foram o médico e a mulher. Havia uma corda esticada do portão à porta do prédio, a qual serviria para orientar os cegos. Subiu às escadas, a mulher guiou o marido até o fundo da camarata mais próxima e deixou-o lá sentado, enquanto ia conhecer melhor o local. As camaratas eram compridas, com duas filas de camas pintadas de cinza e roupas de cama da mesma cor. Havia várias camaratas, corredores estreitos e longos, gabinetes, banheiros, uma cozinha, um refeitório, três salas acolchoadas e forradas com cortiça; do lado externo, uma cerca e algumas árvores mal cuidadas. Havia lixo por todos os lados e camisas de força dentro dos armários. Só quando a mulher retorna e conta para o marido que o local onde estão é um manicômio, é que ele percebe que ela não está cega. A mulher do médico fingiu estar cega para poder ficar junto com o marido e ajudá-lo. Os outros cegos chegaram juntos: o primeiro cego, o ladrão, a rapariga dos óculos escuros e o rapazinho estrábico, sem a mãe. Sentaram-se na primeira cama com a qual tropeçaram. Nesse momento, ouve-se uma voz forte e seca no alto-falante fixado em cima da porta:
Atenção! Atenção! Atenção! O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios às populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidêmico de cegueira, provisoriamente designado por mal-branco, e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio, supondo que de um contágio se trata, supondo que não estaremos apenas perante uma série de coincidências por enquanto inexplicáveis. A decisão de reunir num mesmo local as pessoas afetadas, e, em local próximo, mas separado, as que com elas tiveram algum tipo de contato, não foi tomada sem séria ponderação. O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e espera que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se encontram representará, acima de quaisquer outras considerações pessoais, um ato de solidariedade para com o resto da comunidade nacional. Dito isto, pedimos a atenção de todos para as instruções que se seguem, primeiro, as luzes manter-se-ão sempre acesas, será inútil qualquer tentativa de manipular os interruptores, não funcionam, segundo, abandonar o edifício sem autorização significará morte imediata, terceiro, em cada camarata existe um telefone que só poderá ser utilizado para requisitar ao exterior a reposição de produtos de higiene e limpeza, quarto, os internados lavarão manualmente as suas roupas, quinto, recomenda-se a eleição de responsáveis de camarata, trata-se de uma recomendação, não de uma ordem, os internados organizar-se-ão como melhor entenderem, desde que cumpram as regras anteriores e as que seguidamente continuamos a enunciar, sexto, três vezes ao dia serão depositadas caixas de comida na porta de entrada, à direita e à esquerda, destinadas, respectivamente, aos pacientes e aos suspeitos de contágio, sétimo, todos os restos deverão ser queimados, considerando-se restos, para este efeito, além de qualquer comida sobrante, as caixas, os pratos e os talheres, que estão fabricados de materiais combustíveis, oitavo, a queima deverá ser efetuada nos pátios interiores do edifício ou na cerca, nono, os internados são responsáveis por todas as consequências negativas dessas queimas, décimo, em caso de incêndio, seja ele fortuito ou intencional, os bombeiros não intervirão décimo primeiro, igualmente não deverão os internados contar com nenhum tipo de intervenção do exterior na hipótese de virem a verificar-se doenças entre eles, assim como a ocorrência de desordens ou agressões, décimo segundo, em caso de morte, seja qual for à causa, os internados enterrarão sem formalidades o cadáver na cerca, décimo terceiro, a comunicação entre a ala dos pacientes e a ala dos suspeitos de contágio far-se-á pelo corpo central do edifício, o mesmo por onde entraram, décimo quarto, os suspeitos de contágio que vierem a cegar transitarão imediatamente para a ala dos que já estão cegos, décimo quinto, Esta. Comunicação será repetida todos os dias, há esta mesma hora, para conhecimento dos novos ingressados. O Governo e a Nação esperam que cada um cumpra o seu dever. Boas noites. Após o silêncio, o ladrão levanta-se e acusa o primeiro cego de ser o culpado da tragédia, diz que se não o tivesse ajudado a ir para casa, não teria cegado. Agora o primeiro cego percebe que o outro homem é o ladrão que roubou seu carro e começam a discutir. O ladrão avança sobre ele e rolam por entre as camas, até que o médico e sua mulher conseguem separá-los. O rapazinho estrábico pede para fazer xixi e, ouvindo isso, surge em todos uma grande vontade de urinar. Decidem ir todos juntos à procura do banheiro. Na fila vão: a mulher do médico, a rapariga segurando o rapazinho pela mão, o ladrão, o médico e, por fim, o primeiro cego. O ladrão, aproveitando-se da situação, começou a acariciar a nuca e os seios da rapariga. Esta lhe deu um coice e o salto de seu sapato fincou-se na coxa do homem. O sangue corria pela perna e a mulher do médico, vendo o aspecto ruim da ferida, levou-o à cozinha, com a ajuda do marido, lavou o ferimento e amarrou a camisola do ladrão ao redor. Voltaram para procurar o banheiro, mas o rapazinho já havia feito xixi nas calças. Depois de satisfazerem suas necessidades, voltaram para a camarata, e contaram as camas para ficar mais fácil de encontrá-las depois. O rapazinho tinha fome, mas teria que esperar até o dia seguinte. Deitaram-se e dormiram. A mulher do médico foi a primeira a acordar. Observando os cegos dormindo e a sujeira ao redor, a mulher do médico desejou com todas as suas forças estar cega também. Nesse momento, ouve-se uma gritaria vinda do corredor. Cinco pessoas da outra ala cegaram e foram empurradas para a ala dos cegos. Eram eles: o policial, que encontrou o ladrão na rua a gritar; o motorista de táxi, que levou o primeiro cego ao médico; o ajudante de farmácia, que vendeu o colírio à rapariga dos óculos escuros; a criada de hotel, que socorreu a rapariga quando esta cegou; e a empregada de escritório, que é a mulher do primeiro cego. O alto-falante avisou que a comida podia ser recolhida. O cego e sua mulher saíram para pegar a comida e aproveitaram para pedir aos guardas os medicamentos para o ferido, mas estes tinham ordens expressas de não deixar entrar nada além de comida. À tarde chegaram mais três cegos: a empregada do consultório médico, o homem que estivera com a rapariga no hotel e o policial grosseiro que a levou para a casa dos pais. Mal se instalaram e um rebanho de cegos entrou na camarata. Todas as camas foram ocupadas. Na madrugada, o ladrão resolveu ir ele próprio pedir ajuda aos guardas, imaginando que estes sentiriam pena ao vê-lo naquele estado lamentável. Rastejou, cheio de dores, até o portão. Ao ouvir os ruídos, o soldado foi verificar o que estava acontecendo, assustou-se com o cego e deu-lhe um tiro no meio da cara. O sargento, acordado com o barulho da rajada, ordenou que quatro cegos viessem recolher o corpo. Copyright André Assis. Todos os direitos reservados...

sexta-feira, agosto 17, 2012

Não Nascemos Prontos ! de Mário Sérgio Cortella


Provocações Filosóficas


(Do livro Não nascemos prontos! – provocações filosóficas. De Mário Sérgio Cortella
Petrópolis,RJ: Vozes, 2006)


O sempre surpreendente Guimarães Rosa dizia: “o animal satisfeito dorme”. Por trás dessa aparente obviedade está um dos mais fundos alertas contra o risco de cairmos na monotonia existencial, na redundância afetiva e na indigência intelectual. O que o escritor tão bem percebeu é que a condição humana perde substância e energia vital toda vez que se sente plenamente confortável com a maneira como as coisas já estão, rendendo-se à sedução do repouso e imobilizando-se na acomodação.
A advertência é preciosa: não esquecer que a satisfação conclui, encerra, termina; a satisfação não deixa margem para a continuidade, para o prosseguimento, para a persistência, para o desdobramento. A satisfação acalma, limita, amortece.
Por isso, quando alguém diz “fiquei muito satisfeito com você” ou “estou muito satisfeita com teu trabalho”, é assustador. O que se quer dizer com isso? Que nada mais de mim se deseja? Que o ponto atual é meu limite e, portanto, minha possibilidade? Que de mim nada mais além se pode esperar? Que está bom como está? Assim seria apavorante; passaria a idéia de que desse jeito já basta. Ora, o agradável é quando alguém diz: “teu trabalho (ou carinho, ou comida, ou aula, ou texto, ou música etc.) é bom, fiquei muito insatisfeito e, portanto, quero mais, quero continuar, quero conhecer outras coisas
Um bom filme não é exatamente aquele que, quando termina, ficamos insatisfeitos, parados, olhando, quietos, para a tela, enquanto passam os letreiros, desejando que não cesse? Um bom livro não é aquele que, quando encerramos a leitura, o deixamos um pouco apoiado no colo, absortos e distantes, pensando que não poderia terminar? Uma boa festa, um bom jogo, um bom passeio, uma boa cerimônia não é aquela que queremos que se prolongue?
Com a vida de cada um e de cada uma também tem de ser assim; afinal de contas, não nascemos prontos e acabados. Ainda bem, pois estar satisfeito consigo mesmo é considerar-se terminado e constrangido ao possível da condição do momento.
Quando crianças (só as crianças?), muitas vezes, diante da tensão provocada por algum desafio que exigia esforço (estudar, treinar, emagrecer etc.) ficávamos preocupados e irritados, sonhando e pensando: por que a gente já não nasce pronto, sabendo todas as coisas? Bela e ingênua perspectiva. É fundamental não nascermos sabendo e nem prontos; o ser que nasce sabendo não terá novidades, só reiterações. Somos seres de insatisfação e precisamos ter nisso alguma dose de ambição; todavia, ambição é diferente de ganância, dado que o ambicioso quer mais e melhor, enquanto que o ganancioso quer só para si próprio.
Nascer sabendo é uma limitação porque obriga a apenas repetir e, nunca, a criar, inovar, refazer, modificar. Quanto mais se nasce pronto, mais refém do que já se sabe e, portanto, do passado; aprender sempre é o que mais impede que nos tornemos prisioneiros de situações que, por serem inéditas, não saberíamos enfrentar.
Diante dessa realidade, é absurdo acreditar na idéia de que uma pessoa, quanto mais vive, mais velha fica; para que alguém quanto mais vivesse mais velho ficasse, teria de ter nascido pronto e ir se gastando...
Isso não ocorre com gente, e sim com fogão, sapato, geladeira. Gente não nasce pronta e vai se gastando; gente nasce não-pronta, e vai se fazendo. Eu, no ano que estamos, sou a minha mais nova edição (revista e, às vezes, um pouco ampliada); o mais velho de mim (se é o tempo a medida) está no meu passado e não no presente.
Demora um pouco para entender tudo isso; aliás, como falou o mesmo Guimarães, “não convém fazer escândalo de começo; só aos poucos é que o escuro é claro”...

Está faltando espanto!

Começos do Terceiro Milênio! Profusão exuberante de tecnologia, patamares científicos inéditos, resultados econômicos estrondosos, produção magnífica de bens de consumo. Olhando só para as conquistas, tudo é superlativo!
Nos últimos 50 anos tivemos mais desenvolvimento inventivo do que em toda a história anterior da humanidade; em outras palavras: aceitando a hipótese de que há aproximadamente 40.000 anos somos homo sapiens sapiens, apenas nas 5 décadas mais recentes acumulamos mais estruturas de conhecimento e intervenção no mundo do que em todos os 39.950 anos anteriores.
A cada dia nos deparamos com novas invenções, novos produtos, novos modos de fazer e interpretar; em cada um desses dias precisamos nos acostumar com as novidades, aprender a lidar com elas e, mais do que tudo, acabamos por nos submeter ao ritmo que elas impõem. De alguma maneira, essa overdose da novidade induz a uma certa insensibilização dos sentidos e dos sentimentos, de modo que se acaba por considerar todo esse redemoinho cotidiano como sendo corriqueiro e “normal”.
Parece até que uma nova e tácita norma social despontou: fica proibido manifestar admiração exagerada ou rejeição camuflada pela existência de produtos resultantes das robustas vitórias da racionalidade técnica e mercantil. Se, até há pouco, o pedantismo consumista se encarnava na posse de bens diferenciais (“Eu tenho isto e você não tem; então, sou melhor que você”), agora, mudou o foco. A superioridade daqueles que já têm de tudo se expressa não mais na posse de um objeto, mas, antes, na simulação de que tal objeto é familiar e, mais ainda, de uso corriqueiro no dia-a-dia. Afinal, surpreender-se com a invenção de algo (“Você ainda não conhece?”) seria indício de desatualização informativa; já a rejeição do uso (“Você ainda não utiliza?”) sinalizaria arcaísmo mental e uma senil pré-modernidade.
Essa é uma imensa confusão entre o disponível e o supérfluo. Não é à toa que Eurípedes, o magistral tragediógrafo grego do século 5 a.C., vivendo num período de extensa abundância de recursos exclusivos para as elites (tal como hoje, entre nós) tenha perguntado: “O que é a abundância? Um nome, nada mais; ao sensato basta o necessário”.
A sensatez de muitos está curvando-se ao tresloucado modismo tecnólatra que, como ponto de partida, incorpora procedimentos autoritários e imperativos (até fascistas), subordinando a liberdade de escolha a uma compulsão irrefletida. O pensador francês contemporâneo Roland Barthes, mais conhecido fora do mundo acadêmico por ter escrito Fragmentos de um discurso amoroso - e que, a propósito, produziu um ensaio demolidor de certezas chamado O siatema da moda -, alertou-nos para o fato de que “o fascismo não é impedir-nos de dizer, é obrigar-nos a dizer”.
A questão não é, de forma alguma, abandonar a tecnologia e seus resultados positivos; isso seria uma estupidez. O que não se pode perder, porém, é a capacidade de ficar espantado; essa perda nos leva a achar tudo muito óbvio e rotineiro, impedindo a admiração que conduz à reflexão criadora. É o famoso (e ambíguo) “parar para pensar” e, claro, admirar.
É necessário não menosprezar a atitude inovadora daqueles que, como as crianças, ainda se admiram que as coisas sejam como são, em vez de fingir que espantoso seria se não fossem assim...

Cuidado com a tacocracia...

Se você não se cuidar, a tacocracia vai te pegar!
Os antigos gregos, avós da cultura ocidental, quando usavam o termo tákhos (rápido) para expressar uma característica ou a qualidade específica de algo, não poderiam imaginar que um dia seus herdeiros fôssemos capazes de escolher a velocidade como o principal critério de qualidade para as coisas em geral.
Estamos próximos, muito próximos, de uma tacocracia, na qual a rapidez em todas as áreas aparece como um poder quase despótico e como exclusivo parâmetro para aferir se alguma situação, procedimento ou relação serve ou não serve, é boa ou não.
A pressa não é mais inimiga da perfeição? Devagar não se vai mais ao longe? Há, ainda, algum valor que possa ser atribuído a algo que demora um pouco mais para ser feito, fruído ou conquistado?
Não; não temos mais tempo! Cada dia levantamos mais cedo e vamos dormir mais tarde, sempre com a sensação de que o dia deveria ser mais extenso ou não soubemos nos organizar direito. Nem o relógio olhamos mais para ver que horas são, mas, isso sim, para verificar “quanto falta”. É essa urgência de visualizar o intervalo espacial entre os ponteiros que fez, por exemplo, com que os relógios de pulso digitais não obtivessem sucesso duradouro, pois precisam ser lidos, em vez de apenas percebidos de relance; hoje, só os usam os que têm algum tempo sobrante para fazer cálculos.
Vai demorar para ficar pronto? Vou demorar para aprender isso? A conexão é demorada? A leitura desse livro é demorada? A visita ao museu é demorada? O culto é demorado? Aprender a tocar este instrumento é demorado? Cuidar mais do corpo é demorado? Demora para fazer esta comida? Então, não posso querer.
Será um exagero pensar que estamos sendo invadidos pela tacocracia? Bem, lembremos somente uma situação modelar: a alimentação.
Embora esta seja uma das maiores fontes de prazer e convivência para a nossa espécie, querem que eu, o tempo todo (em vez de ser opção eventual), procure um tipo de comida em função da qual não precise pensar muito para selecionar - posso numerá-la, no lugar de nomeá-la - e, claro, não espere além de um minuto para recebê-la.
Ademais, essa comida deve ter uma consistência que me permita dispensar o trabalho de mastigar muito, podendo comê-la com as mãos, após ser tirada do interior de um saco de papel. O melhor de tudo é que eu consiga fazer isso sentado em fixos banquinhos desconfortáveis (diante de incômodas mesas) ou, como ápice civilizatório, dentro do carro, enquanto dirijo.
É prático, sem dúvida. Mas, é bom? Possibilita que eu ganhe tempo, mas, o que faço com o tempo que ganho? Vou desfrutar mais lentamente outras coisas ou continuo correndo?
Tem alguma coisa errada nessa turbinação toda.
Afinal, para além dos gregos que traímos, vamos pelo menos respeitar os latinos, para os quais curriculum vitae significava o percurso da vida, e não a vida em correria...

Descanse em paz?

Em uma de suas cartas, o romancista Gustave Flaubert escreveu: “Que grande necrópole é o coração humano! Para que irmos aos cemitérios? Basta abrirmos as nossas recordações; quantos túmulos!”
Uma visão quase amarga como essa coube muito bem no século retrasado e, até há pouco, ainda tinha alguma vitalidade; agora, nas nossas pós-modernas e alvoroçadas épocas, estamos perdendo parte da capacidade de abrir as recordações, mesmo as tumulares. Hoje, a velocidade inclemente do cotidiano não nos oferece tempo para recordações muito duradouras; se estamos com pouco tempo para cuidar da vida, menos ainda nos sobra para cuidar da morte.
Não temos tempo! Houve uma época na história humana (e não faz muito) na qual, quando um dos nossos morria, parávamos tudo o que estivéssemos fazendo; o trabalho, ou o que mais fosse, era interrompido, e, se preciso, faziam-se longas viagens, até noturnas (sem os rápidos aviões, carros e boas estradas atuais), mas, não deixávamos de, velando os partintes, cuidar dos ficantes.
A humanidade houvera compreendido que, se com a morte não nos conformamos, ao menos nos confortamos, nos fortalecemos em conjunto, nos apoiamos. As pessoas ficavam, às vezes por um dia e uma noite, em volta da família, aglomerados, grudados, exalando solidariedade e emoção, orando e purgando lentamente o impacto, mostrando aos mais próximos que não estavam sozinhos na perda.
Ora, um dos mais fortes indícios da presença humana é o cuidado com os mortos; as mais antigas manifestações de formação social, quando as localizamos, o fazemos por intermédio de túmulos, inscrições, ossos agrupados ou corpos enterrados ou cremados. É sinal de humanidade não se conformar com a morte e, portanto, buscar vencer simbolicamente o que parece ser invencível. A própria palavra cemitério (derivada do grego), usada em vários idiomas, significa lugar para dormir, dormitório, lugar para descansar. Deixar esvair essa marca é extremamente perigoso, pois não propicia a especial ocasião de meditar sobre a vida e, eventualmente, descansar em paz.
Deixamos de velar (no sentido de tomar conta, cuidar) para velar (como cobrir, ocultar, esquecer, apagar).
Não temos mais tempo! Se recebemos a notícia de que algum conhecido faleceu, olhamos o relógio e pensamos: “vou ver se dou uma passadinha lá...”; alguém morre às 10 horas da manhã e, se der, será enterrado até as cinco da tarde, de maneira a, em nome do “não sofrermos muito”, sermos mais práticos e rápidos. Nem as crianças (já um pouco crescidas) são levadas a velórios; muitos argumentam que é para poupá-las da dor. Isso não pode valer; parte delas cresce sem a noção mais próxima de perda e, despreparadas e insensibilizadas para enfrentar algumas situações nas quais a nossa humanidade desponta, simultaneamente, fraca e forte, perdem força vital.
Por isso, não será estranho se, em breve, tivermos que nos acostumar também com o velório virtual ou, principalmente, como já está começando em países mais “avançados”, o velório “drive thru”: entra-se com o carro, coloca-se a mão sobre o corpo do falecido (enquanto um sensor lê tuas digitais para enviar um agradecimento formal), aperta-se um botão com a oração que se deseja fazer e... pronto, já vai tarde. Parece ridículo? Se não prestarmos atenção, assim será.
Vale o alerta de Gilbert Cesbron: “E se fosse isso perder a vida: fazermos a nós próprios as perguntas essenciais um pouco tarde demais?”


O futuro saqueado

Estamos vivendo um saque antecipado do futuro! Parece alarmista ou, até, piegas, mas continuamos esboroando e furtando as condições de existência para as próximas gerações depois da nossa. Essa é uma situação inédita, pois, durante toda a trajetória evolutiva e histórica da espécie, a grande preocupação de qualquer comunidade humana vinha sendo garantir a continuidade e a melhoria das estruturas de manutenção da vida para os descendentes.
A questão central nesse saque não é exclusivamente a materialidade da situação, isto é, a degradação do meio ambiente e dos recursos naturais, dado que, ainda que de forma incipiente, disso estamos cuidando.
O fulcro da problemática é, isso sim, os adultos admitirmos e promovermos o apodrecimento da esperança nas novas gerações. A elas vimos negando o futuro e, com facilidade, ouvem de nós aterradores prognósticos. (Não haverá futuro! Não haverá emprego! Não haverá natureza!) Também desqualificamos o presente e o passado delas. (Isso não é vida; vocês não sabem brincar! Vocês não tiveram infância! Isso que vocês comem é só porcaria! Isso não é música, é barulho!)
A tudo isso se dá um ar de fatalidade que indica a crença na impossibilidade de alterar essa rota coletiva; por isso, as novas gerações começam a acreditar no mais ameaçador perigo para a convivência gregária e a solidariedade: o individualismo exacerbado. A regra passa a ser a exaltação descontextualizada do carpe diem escrito por Horácio nas suas Odes; deixa de ser um “aproveita o dia”, entendido pelo poeta latino como sinal de equilíbrio e virtude moderadora, e passa a ser um “curta tudo o que puder, no menor tempo possível, pois só há um horizonte: a vida é breve e sem sentido e nada mais nos resta a não ser o momento”...
Não é casual que haja um aumento desproporcional de jovens (cada vez com menos idade) que desvalorizam a vida, começando pelo desprezo pela própria integridade física e mental; são vítimas fáceis das drogas fatais e do álcool sem medida, proporcionadores de felicidade (ou fuga) momentânea. Claro, desse modo, sem futuro, o presente fica insuportável; o grande Dostoievski escreveu em O idiota que “não foi quando descobriu a América, mas quando estava prestes a descobri-la, que Colombo se sentiu feliz”.
Vive-se, além de tudo, uma sociedade consumista, na qual a mínima possibilidade de sentido fugaz encontra-se na posse, mesmo que circunstancial, de objetos que são anunciados como sendo os portadores do segredo da felicidade. Crianças bem pequenas perderam a capacidade de brincar sozinhas, com um maravilhoso universo imaginativo e abstrato, no qual nada material precisava adentrar; agora, elas têm “necessidades” inseridas nelas pela nossa inteligência adulta e veiculadas por uma mídia que nem sempre se preocupa com o papel formador que desempenha.
Há uma estonteante presentificação do futuro que pode seqüestrar a compreensão da vida como história e processo coletivo, fazendo, por exemplo, parecer que, como o terceiro milênio ocidental recém-iniciado, ele será todo vivido e passado já; fala-se no terceiro milênio como se ele fosse esgotar-se nas próximas décadas.
Não dá para supor um eterno presente; mesmo o fictício Dorian Gray, com o quase perene retrato, pagou caro pela sua ganância vital; nessa obra, Oscar Wilde fez aviso premonitório para quando algumas máscaras caírem: “As crianças começam por amar os seus pais; quando crescem, julgam-nos; algumas vezes, perdoam-lhes”.

A mídia como corpo docente

As sociedades ocidentais contemporâneas transferiram, pouco a pouco, os cuidados com as crianças das famílias para as escolas; a formação e informação cognitiva, moral, sexual, religiosa, cívica etc., passou a ser entendida como uma tarefa essencial do espaço escolar, em substituição a uma convivência familiar cada vez mais restrita em qualidade e quantidade.
Por isso, quando nos aproximamos do início do ano letivo, não são só as aulas que chegam; na prática, é a entrada ou reentrada da nossa infância e adolescência no território que se supõe seja o mais adequado para elas estarem (“em vez de ficarem nas ruas ou shoppings”...). Há, assim, uma crescente sacralização do espaço escolar como sendo um lugar de proteção/formação/salvação e, por conseqüência, uma maior responsabilização das educadoras e dos educadores na guarida das gerações vindouras; no entanto, essa responsabilização beira a culpabilização, como se a escola e os profissionais nela presentes tivessem, isoladamente, o exclusivo dever de dar conta de toda a complexidade presente na educação da juventude.
É preciso, porém, observar um fenômeno que explodiu nos últimos 20 anos: uma criança dos centros urbanos, a partir dos dois anos de idade, assiste, em média, três horas diárias de televisão, o que resulta em mais de 1.000 horas como espectadora durante um ano (sem contar as outras mídias eletrônicas como rádio, cinema e computador); ao chegar aos sete anos, idade escolar obrigatória, ela já assistiu a mais de 5.000 horas de programação televisiva. Vamos enfatizar: uma criança, no dia em que entrar no Ensino Fundamental, pisará na escola já tendo sido espectadora de mais de cinco mil horas de televisão!
Quando pensamos no campo da formação ética e de cidadania, os problemas na educação brasileira não são, evidentemente, um ônus a recair prioritariamente sobre o corpo docente escolar; há um outro corpo docente não-escolar com uma estupenda e eficaz ascendência sobre as crianças jovens.
Cinco mil horas! Imagine-se a responsabilidade daqueles e daquelas que produzem as programações e as publicidades! Pense-se no impacto formativo sobre os valores, hábitos, normas, regras e saberes que os profissionais dessa área de mídia têm sobre os infantes e sobre a chamada “primeira infância, época na qual uma parte do caráter permanente da pessoa se estrutura!
É claro que isso obriga também aos que lidam com educação escolar rever os objetivos e a metodologia de trabalho; afinal, crianças pequenas não chegam mais à escola sem alguma base de conhecimento e informação científica e social, dado que têm outras fontes de cultura no cotidiano. Entretanto, essa constatação não desobriga a mídia a pensar e repensar o seu papel social: valores discricionários, erotização precoce, consumismo desvairado, competição e não cooperação, individualismo etc., podem estar sendo “ensinados” sem que os na mídia envolvidos dêem conta disso.
Vale, por isso, lembrar o que, em 1980, nos contou Adélia Prado em Cacos para um vitral (com seu estilo simuladamente ingênuo e deveras percuciente), descrevendo uma cena familiar noturna em uma sala em pequenina cidade das Minas Gerais, quando fictícios personagens de novela borrifavam seus efeitos concretos na vida real: “Anselmo Vargas beijava Sônia Margot na novela das sete. O menininho de Matilde pediu: mãe, muda o programa. Meu pintinho fica ruim”...

Saudável loucura

Todo ano é a mesma coisa: o carnaval se aproxima e muitas pessoas começam a reclamar sem parar. Com impulsos rabugentos e veleidades moralistas, murmuram pelos cantos ou em voz alta contra a alegre ociosidade que, neste período e por estas plagas, seduz a maioria dos humanamente mortais.
Aproveitemos a inspiração dos ambientes das passarelas momescas, quando se reinstala um simulacro da nobreza monárquica, e vamos dar passagem à advertência do jovem ensaísta francês do século 18, Marquês Luc de Clapiers Vauvenargues: “Os preguiçosos têm sempre vontade de fazer alguma coisa”.
Os que, como feitores renascidos, se outorgam a tarefa de colocar a todos nos eixos, gritam e alardeiam, com ares doutorais, que o Brasil não tem jeito mesmo! Onde já se viu um país pobre dar-se ao luxo de parar de trabalhar? Já tem muito feriado por aqui e agora continuam suspendendo tudo de útil por cinco dias apenas para ficar dançando e pulando pelas ruas. O que os estrangeiros, gente séria, vão pensar do nosso povo? Carnaval é perda de tempo! É por isso que uma nação assim não vai para frente...
Ora, já somos uma das poderosas economias capitalistas do planeta, sem que a riqueza coletivamente gerada seja adequadamente repartida! Uma nação vai para a frente quando prevalece a justiça cidadã e a paz social, quando há garantia do direito ao trabalho (e, portanto, ao descanso), quando os privilégios exclusivos não são apresentados como conquistas inevitáveis de alguns apaniguados. Uma nação perde tempo quando valoriza o cinismo que acomete fartamente alguns que se preocupam com quantos dias de folga tiram aqueles milhões para os quais sobra muito pouco de vida sã fora do horário de trabalho.
É necessário interromper a lógica que entende o trabalho contínuo e incansável como sendo a única fonte de saudabilidade moral e cívica; é preciso enterrar a estranha racionalidade que entende a capacidade de voltar a trabalhar como sendo o melhor critério de saúde. É comum um adulto internado em um hospital ou adoentado em casa considerar-se sarado apenas quando, após perguntar ao médico se pode voltar ao trabalho, fica por ele “liberado”; por que não perguntar: “Doutor, já estou bom? Já posso voltar a namorar, bailar, transar, jogar?”
Por isso, é claro que não deve ser obrigatório “brincar” ou “pular” o carnaval; o que pode ser feito por todos e todas é, isso sim, dar-se o direito de suspender um pouco o pragmatismo laboral do dia-a-dia e ganhar tempo, em vez de perdê-lo. Tempo de parar para dançar, orar, descansar, divertir, meditar, estudar; seja qual for a escolha, um tempo para si mesmo ou para si mesma. Ócio não é falta do que fazer, mas possibilidade de, nas condições apresentadas, fazer a escolha lúdica do que se deseja, sem constrangimento ou compulsoriedade.
Melhor, nesse caso, respeitar os insanamente saudáveis e cotidianamente produtivos, inscrevendo no pavilhão de algum estandarte precursor a assertiva de Mihai Eminescu (patriótico poeta romeno do século 19, mas nem por isso menos futurista): “As pessoas alegres fazem mais loucuras do que as pessoas tristes, porém, as loucuras das pessoas tristes são mais graves
Afinal, louco não é o povo que pára por quase uma semana para brincar; louco, provavelmente, é o povo que nem pensa em parar...

Se você parar para pensar...

Na correria do dia-a-dia, o urgente não vem deixando tempo para o importante! Essa constatação, carregada de estranha obviedade, nos obriga quase a tratar como uma circunstância paralela e eventual aquela que deve ser considerada a marca humana por excelência: a capacidade de reflexão e consciência. Aliás, em alguns momentos, as pessoas usam até de uma advertência (quando querem afirmar que algo não vai bem ou está errado): se você parar para pensar...
Por que parar para pensar? Será tão difícil pensar enquanto se continua fazendo outras coisas, ou, melhor ainda, seria possível fazer sem pensar e, num determinado momento, ter de parar? Ora, pensar é uma atitude contínua, e não um evento episódico! Não é preciso parar, e nem se deve fazê-lo, sob pena de romper com nossa liberdade consciente. Isso, de uma certa forma, retoma uma séria brincadeira feita pelo escritor francês Anatole France (Nobel de Literatura em 1921, um mestre da ironia e do ceticismo) quando dizia que “o pensamento é uma doença peculiar de certos indivíduos e que, a propagar-se, em breve acabaria com a espécie”.
Talvez pensar mais não levasse necessariamente ao “término da espécie”, mas, com muita probabilidade, dificultaria a presença daqueles no mundo dos negócios e da comunicação que só entendem e tratam as pessoas como consumidores vorazes e insanos. Talvez um pensar mais nos levaria a gritar que basta de tantos imperativos! Compre! Olhe! Veja! Faça! Leia! Sinta! E a vontade própria e o desejo sem contornos? E (ainda lembras?) a liberdade de decidir, escolher, optar, aderir? Será um basta do corpo e da mente que já não mais agüentam tantas medicinas, tantas dietas compulsórias, tantas ordens da moda e admoestações da mídia; corpo e mente que carecem, cada dia mais, de horas de sono complementares, horas de lazer suplementares e horas de sossego regulamentares, quase esgotados na capacidade de persistir, combater e evitar o amortecimento dos sentidos e dos sonhos pessoais e sinceros.
Essa demora em pensar mais, esse retardamento da reflexão como uma atitude continuada e deliberada, vem produzindo um fenômeno quase coletivo: mais e mais pessoas querendo desistir, largar tudo, com vontade imensa de sumir, na ânsia de mudar de vida, transformar-se, livrando-se das pequenas situações que torturam, amarguram, esvaem. Vêm à tona impulsos de romper as amarras da civilidade e partir, célere, em direção ao incerto, ao sedutor repouso oferecido pela irracionalidade e pela inconseqüência. Desejo grandão de experimentar o famoso “primeiro a gente enlouquece e, depois, vê como é que fica”... Cansaço imenso de um grande sertão com diminutas veredas?
Quando o inglês (nascido na Índia...) George Orwell, no final dos anos 40 do século passado, publicou a obra 1984 - uma assustadora utopia negativa quanto ao futuro das sociedades, nas quais não haveria liberdade, individualidade e privacidade - despontou no Ocidente um disfarçado e ansiado consenso (apoiado em uma simulada expectativa): tudo aquilo que ele colocara no livro jamais poderia acontecer e nem se relacionava com o porvir do mundo capitalista. No entanto, a macabra história sobre uma sociedade totalitária vai além de fatos abstratos e atinge hoje, em cheio, o terreno da mercadolatria; Orwell disse que, numa sociedade como a que prenunciou, “o crime de pensar não implica a morte; o crime de pensar é a própria morte”.
Pouco importa, dado que ser humano é ser capaz de dizer não ao que parece não ter alternativa. Apesar dos constrangimentos e da tentativa de seqüestro da nossa subjetividade, pensar não é, de fato, crime e, por isso, claro, não se deve parar...

Enquanto há vida...

Temos hoje um razoável consenso: os tempos estão terríveis, difíceis, complicados; partilhamos uma época de grande intranqüilidade espiritual, de inúmeros padecimentos físicos, de infindos distúrbios existenciais, de profundos dilemas morais. Cabe, porém, uma questão: alguma vez não foi assim? Levando em conta que todo e cada ser humano sempre viveu na era contemporânea, em qual delas não teria valido, então, o alerta de Guimarães Rosa de que “viver é muito perigoso”?
No entanto, resistimos! A esperança é um princípio vital, expresso na sábia e verdadeira constatação comum de que “enquanto há vida há esperança”; mesmo face às mais (aparentemente) intransponíveis circunstâncias achamos possível ser de outro modo, inventamos e reinventamos alternativas, recusamos a possibilidade de as realidades nos dominarem,e,sem cessar,sonhamos com o mais e o melhor. Em princípio, como para outros animais, as memórias das inevitáveis e sofridas (mas não exclusivas) experiências cotidianas deveriam nos deixar como legado o medo da repetição, o temor cauteloso pelo retorno da sensação ruim e, até, um impulso em direção ao desalento. Contudo, de novo, resistimos!
É por isso que, em pleno Renascimento (sempre renascimento...) do século 16 ocidental, o magistral Michelangelo dizia que “Deus concedeu uma irmã à recordação, e chamou-lhe esperança”. Essa idéia foi retomada no século 19 pelo dramaturgo francês Victor Hugo - não por acaso um dos expoentes máximos do Romantismo - que afirmava ser “a esperança uma memória que deseja”; e, ainda, na obra Os miseráveis, o mesmo autor nos instiga, afirmando que “julgar-se-ia bem mais corretamente um homem por aquilo que ele sonha do que por aquilo que ele pensa”.
Sonho aí não significa, claro, devaneio inútil ou delírio; sonho nessa acepção é o lugar do não-pronto, mas, desejado, ansiado, querido. Nessa direção, também o Oriente nos socorre com a milenar inspiração que anima os escritos de Zhou Shuren (mestre da moderna literatura chinesa, conhecido pelo pseudônimo literário Lu Xun); escreveu ele que “a esperança não é nem realidade nem quimera; ela é como os caminhos da terra: sobre a terra não havia caminhos; eles foram feitos pelo grande número dos que passam”.
O dinamarquês (depois naturalizado norte-americano) Jacob Riis (considerado o primeiro fotojornalista) dedicou sua arte na transição do século 19 para o 20 a escancarar a magnitude dramática da pobreza urbana; publicou centenas de fotografias daqueles que Victor Hugo imortalizara como miseráveis, mas plenos de esperança. O fotógrafo consignou a humana capacidade de não desistir em uma belíssima imagem, ao dizer que “quando nada parece ajudar, eu vou e olho o cortador de pedras martelando sua rocha talvez cem vezes sem que uma só rachadura apareça. No entanto, na centésima primeira martelada, a pedra se abre em duas, e eu sei que não foi aquela a que conseguiu, mas todas as que vieram antes”.
Os excessivamente pragmáticos (ou corretamente chamados de idiotas da objetividade) diriam ser esta uma concepção piegas; são esses, com muita probabilidade, incapazes de compreender a esperança como produtora de futuro e aniquiladora da dureza do existir. Assim, não perceberiam a profunda beleza contida na lenda atribuída ao, também cortador de pedras, Michelangelo. Ao ser perguntado sobre como fizera a escultura de Davi (com quase 4,5 metros em um só bloco de mármore, guardada na Academia de Belas Artes de Florença), ele disse: “Foi fácil; fiquei um bom tempo olhando o mármore até nele enxergar o Davi. Aí, peguei o martelo e o cinzel e tirei tudo o que não era Davi”...