A romper-se um repentino e inexplicável surto de cegueira, Saramago nos faz vê a desorganização e a superação dos valores fundamentais da sociedade, transformando seus personagens em animais egocêntricos na luta pela sobrevivência. No em saio sobre a Cegueira Saramago nos faz enxergar muito mais do que isso, nos faz ver a própria humanidade frente a uma condição de caos. Logo de inicio deparamo-nos com a exclamação de um personagem: "Estou cego” com objetividade e com um discurso coerente, vemos que os acontecimentos narrados prendam a atenção do leitor levando-nos quase para que dentro da narração. Vários personagens vão se tornando cegos. O autor omite o nome da cidade, não há datas e os seus personagens são anônimos, conhecidos apenas como "a mulher do médico", "o homem da venda preta", "a rapariga dos óculos escuros" ou "o cão das lágrimas". A narração de Saramago passa a ficar tão claro à imaginação do leitor, que é impossível não temer uma verdadeira epidemia, imaginarmos como agiriam as autoridades governamentais em uma situação como essa, como o medo faria vir à tona os instintos mais escondidos dos homens.
Existe uma mulher que ainda consegue enxergar. Entre tantos cegos presos em um manicômio por ordem governamental, é a esposa do médico, que faz lembrar outra personagem de Saramago: Blimunda, de Memorial do Convento, que tem a capacidade de enxergar o interior das pessoas, mas nem por isso sentia-se privilegiada, pois algumas vezes tinha que ver aquilo que não queria. Do mesmo modo, a mulher do médico é a única que pode ver as belas e horrorosas imagens descritas pelo autor, seja o lindo banho de chuva das mulheres na varanda ou os cachorros que devoram o cadáver de um homem na rua. Ela não sabe se é abençoada ou amaldiçoada por poder enxergar em uma terra de cegos.
Do mesmo modo, o velho da venda preta (apesar de antes da cegueira enxergar apenas com um dos olhos) narra o que acontece do lado de fora do manicômio, por meio das notícias do rádio e do que via quando ainda estava do lado de fora. É ele que abre os olhos do leitor para a realidade do mundo, o caos que se pode instalar a qualquer momento, as atitudes impensadas de quem está no poder tentando isolar o problema ao invés de estudá-lo. Regras são quebradas, pois ninguém mais vê quem está agindo errado; os mais fortes abusam do poder; e o instinto de sobrevivência vai tomando conta dos homens.
Saramago prefere pelo anonimato das personagens, como uma maneira de universalizar a experiência, abrangendo todas as pessoas, todos os nomes. Ao fazê-lo somos levados para o universo ficcional e experimentamos a cada página a dolorosa trajetória das personagens do romance.
A reação de muitos leitores, que se dizem incapazes de terminar de ler o livro, dada a sua crueza e contundência, é prova de que o autor atingiu o seu objetivo de inserir-nos no seu universo ficcional, muito embora muitos de nós ainda estejamos nos recusando a "atender" naquilo que nossos olhos nos mostram.
O Ensaio sobre a cegueira é a alegoria de um autor que nos faz pensar "a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam". José Saramago nos dá, aqui, uma oportunidade de refletir a contemporaneidade tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos maiores visionários modernos. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago nos faz pensar diante da pressão dos tempos e do que se perdeu: "uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos"
Resumo
Um dia normal na cidade. Os carros parados numa esquinas esperam o sinal mudar. A luz verde acende-se, mas um dos carros não se move. Em meio às buzinas enfurecidas e à gente que bate nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, formando duas palavras:
"Estou cego".
O homem dentro do carro esbraceja, grita, mas não consegue escapar da cegueira branca que inunda seus olhos. É uma cegueira diferente, luminosa, como se ele tivesse mergulhado de olhos abertos num "mar de leite". Apesar disso, seus olhos tem uma aparência normal.
As pessoas o ajudam a sair do carro e ele, entre lágrimas, implora que alguém o leve para casa. Um homem oferece-se para ir dirigindo seu carro. Como não havia local disponível para estacionar na rua da cada do cego, ele desceu do carro e ficou esperando o homem, que estacionou numa rua transversal. Subiram até o apartamento, que ficava no 3º andar. O homem quis aguardar até que a mulher do cego chegasse, mas este, com medo daquele estranho, preferiu recusar a oferta.
Quando a mulher chega e o marido lhe conta que está cego, ela custa a acreditar, depois se desespera e liga para o primeiro oftalmologista que encontra na lista telefônica, marcando uma consulta urgente.
O cego aguarda em frente ao prédio enquanto sua mulher vai buscar o carro na rua em que ele disse estar estacionado, com sua própria chave, pois o homem que o levou para casa não lhe- entregou a chave. Ela volta com um táxi, pois aquela "boa alma" roubou-lhes o carro.
Na sala de espera do consultório estava um velho com uma venda preta, um rapazinho estrábico e sua mãe, uma rapariga de óculos escuros e mais duas pessoas. Passaram o cego na frente dos outros pacientes e, depois de examiná-lo minuciosamente por duas vezes, o médico conclui que não há nada de errado com seus olhos; estavam aparentemente perfeitos. Pediu alguns exames mais detalhados e, quando saíram, ficou pensativo, nunca vira coisa parecida em toda sua vida.
O sentimento de culpa foi tomando conta do ladrão do carro. Quando se ofereceu para ajudar o cego, ainda não tinha o roubo em mente; a ideia só lhe apareceu quando estava em direção à casa do cego. Sentia-se mal estando sentado no mesmo lugar onde um homem sadio acabara de cegar. Nervoso, o ladrão redobrou a atenção e começou a controlar o carro para que nunca tivesse que parar num sinal vermelho. Estava à beira de um ataque de nervos e o barracão para onde costumava levar os carros roubados ficava longe dali. Então, parou o carro, desceu para tomar um pouco de ar, andou um pouco e, de repente, cegou. Foi encontrado por um policial que o levou para casa, desta vez não por ter roubado, o policial não sabia disto, mas sim por não ser capaz de orientar-se sozinho.
O caso da rapariga dos óculos escuros era simples, apenas uma conjuntivite. Quando saiu do consultório, já à noite, chamou um táxi, passou na farmácia e comprou o colírio que o médico lhe receitara. A bela rapariga dos óculos escuros era uma prostituta e tinha um encontro marcado num hotel aquela noite. Depois do explosivo encontro amoroso, ainda via tudo branco, mas não era por causa do êxtase que sentia, ela também cegara. Nua e aos gritos, a rapariga foi vestida às pressas e colocada para fora do hotel. Um policial extremamente grosseiro levou-a para a casa dos pais num táxi.
Depois de atender todos os pacientes, o médico ligou para um amigo e falou sobre o caso. A princípio suspeitaram de uma agnosia ou amaurose, mesmo sabendo que ambas as doenças tratavam-se de cegueira negra, o oposto do que descrevia o cego. Resolveram marcar uma nova consulta para examinarem junto o paciente. Chegando a casa, o médico ficou até altas horas pesquisando sobre o assunto em seus livros. Quando resolveu guardá-los para ir se deitar, o médico cegou. Deitou-se devagar para que a mulher não notasse e passou a noite toda em claro, pensando que, como oftalmologista, deveria avisar as autoridades competentes sobre a "treva branca" altamente contagiosa que estava a se espalhar. Quando, na manhã seguinte, contou à sua mulher que estava cego, ela abraçou-o com força, apesar de ele ter tentado afastá-la por medo do contágio, preparou o café e ajudou-o a telefonar para as autoridades. Diante da grosseria com que fora tratado, resolveu avisar diretamente o diretor clínico de onde trabalhava e este se encarregaria de fazer os outros contatos. A essa altura, já tinham notícia da cegueira do rapazinho estrábico, da rapariga dos óculos escuros e do ladrão. O ministério pediu que ele arrumasse as malas, pois mandariam uma ambulância para buscá-lo, mas não avisaram para onde ele seria levado. Quando a ambulância chegou, a mulher ajudou o marido a acomodar-se, guardou as malas e sentou-se ao seu lado. O motorista da ambulância informou que só poderia levar o médico, mas a mulher disse que também teria que ser levada, pois acabara de cegar.
O ministro teve a "brilhante idéia" de deixar todos os cegos e as pessoas que tiveram contato com eles de quarentena, uma quarentena diferente das outras, pois esta ninguém sabia o quanto poderia durar.
O local escolhido foi um manicômio desativado. Havia duas alas: uma seria ocupada pelos cegos, e a outra, pelas pessoas que tiveram contato com eles. Conforme as pessoas da última ala fossem cegando, atravessariam o corredor e se instalariam na outra ala.
Os primeiros a chegar ao manicômio foram o médico e a mulher. Havia uma corda esticada do portão à porta do prédio, a qual serviria para orientar os cegos. Subiu às escadas, a mulher guiou o marido até o fundo da camarata mais próxima e deixou-o lá sentado, enquanto ia conhecer melhor o local.
As camaratas eram compridas, com duas filas de camas pintadas de cinza e roupas de cama da mesma cor. Havia várias camaratas, corredores estreitos e longos, gabinetes, banheiros, uma cozinha, um refeitório, três salas acolchoadas e forradas com cortiça; do lado externo, uma cerca e algumas árvores mal cuidadas. Havia lixo por todos os lados e camisas de força dentro dos armários.
Só quando a mulher retorna e conta para o marido que o local onde estão é um manicômio, é que ele percebe que ela não está cega. A mulher do médico fingiu estar cega para poder ficar junto com o marido e ajudá-lo.
Os outros cegos chegaram juntos: o primeiro cego, o ladrão, a rapariga dos óculos escuros e o rapazinho estrábico, sem a mãe. Sentaram-se na primeira cama com a qual tropeçaram. Nesse momento, ouve-se uma voz forte e seca no alto-falante fixado em cima da porta:
Atenção! Atenção! Atenção! O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios às populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidêmico de cegueira, provisoriamente designado por mal-branco, e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio, supondo que de um contágio se trata, supondo que não estaremos apenas perante uma série de coincidências por enquanto inexplicáveis. A decisão de reunir num mesmo local as pessoas afetadas, e, em local próximo, mas separado, as que com elas tiveram algum tipo de contato, não foi tomada sem séria ponderação. O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e espera que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se encontram representará, acima de quaisquer outras considerações pessoais, um ato de solidariedade para com o resto da comunidade nacional. Dito isto, pedimos a atenção de todos para as instruções que se seguem, primeiro, as luzes manter-se-ão sempre acesas, será inútil qualquer tentativa de manipular os interruptores, não funcionam, segundo, abandonar o edifício sem autorização significará morte imediata, terceiro, em cada camarata existe um telefone que só poderá ser utilizado para requisitar ao exterior a reposição de produtos de higiene e limpeza, quarto, os internados lavarão manualmente as suas roupas, quinto, recomenda-se a eleição de responsáveis de camarata, trata-se de uma recomendação, não de uma ordem, os internados organizar-se-ão como melhor entenderem, desde que cumpram as regras anteriores e as que seguidamente continuamos a enunciar, sexto, três vezes ao dia serão depositadas caixas de comida na porta de entrada, à direita e à esquerda, destinadas, respectivamente, aos pacientes e aos suspeitos de contágio, sétimo, todos os restos deverão ser queimados, considerando-se restos, para este efeito, além de qualquer comida sobrante, as caixas, os pratos e os talheres, que estão fabricados de materiais combustíveis, oitavo, a queima deverá ser efetuada nos pátios interiores do edifício ou na cerca, nono, os internados são responsáveis por todas as consequências negativas dessas queimas, décimo, em caso de incêndio, seja ele fortuito ou intencional, os bombeiros não intervirão décimo primeiro, igualmente não deverão os internados contar com nenhum tipo de intervenção do exterior na hipótese de virem a verificar-se doenças entre eles, assim como a ocorrência de desordens ou agressões, décimo segundo, em caso de morte, seja qual for à causa, os internados enterrarão sem formalidades o cadáver na cerca, décimo terceiro, a comunicação entre a ala dos pacientes e a ala dos suspeitos de contágio far-se-á pelo corpo central do edifício, o mesmo por onde entraram, décimo quarto, os suspeitos de contágio que vierem a cegar transitarão imediatamente para a ala dos que já estão cegos, décimo quinto, Esta. Comunicação será repetida todos os dias, há esta mesma hora, para conhecimento dos novos ingressados. O Governo e a Nação esperam que cada um cumpra o seu dever. Boas noites.
Após o silêncio, o ladrão levanta-se e acusa o primeiro cego de ser o culpado da tragédia, diz que se não o tivesse ajudado a ir para casa, não teria cegado. Agora o primeiro cego percebe que o outro homem é o ladrão que roubou seu carro e começam a discutir. O ladrão avança sobre ele e rolam por entre as camas, até que o médico e sua mulher conseguem separá-los.
O rapazinho estrábico pede para fazer xixi e, ouvindo isso, surge em todos uma grande vontade de urinar. Decidem ir todos juntos à procura do banheiro. Na fila vão: a mulher do médico, a rapariga segurando o rapazinho pela mão, o ladrão, o médico e, por fim, o primeiro cego.
O ladrão, aproveitando-se da situação, começou a acariciar a nuca e os seios da rapariga. Esta lhe deu um coice e o salto de seu sapato fincou-se na coxa do homem. O sangue corria pela perna e a mulher do médico, vendo o aspecto ruim da ferida, levou-o à cozinha, com a ajuda do marido, lavou o ferimento e amarrou a camisola do ladrão ao redor.
Voltaram para procurar o banheiro, mas o rapazinho já havia feito xixi nas calças. Depois de satisfazerem suas necessidades, voltaram para a camarata, e contaram as camas para ficar mais fácil de encontrá-las depois. O rapazinho tinha fome, mas teria que esperar até o dia seguinte. Deitaram-se e dormiram.
A mulher do médico foi a primeira a acordar. Observando os cegos dormindo e a sujeira ao redor, a mulher do médico desejou com todas as suas forças estar cega também.
Nesse momento, ouve-se uma gritaria vinda do corredor. Cinco pessoas da outra ala cegaram e foram empurradas para a ala dos cegos. Eram eles: o policial, que encontrou o ladrão na rua a gritar; o motorista de táxi, que levou o primeiro cego ao médico; o ajudante de farmácia, que vendeu o colírio à rapariga dos óculos escuros; a criada de hotel, que socorreu a rapariga quando esta cegou; e a empregada de escritório, que é a mulher do primeiro cego.
O alto-falante avisou que a comida podia ser recolhida. O cego e sua mulher saíram para pegar a comida e aproveitaram para pedir aos guardas os medicamentos para o ferido, mas estes tinham ordens expressas de não deixar entrar nada além de comida.
À tarde chegaram mais três cegos: a empregada do consultório médico, o homem que estivera com a rapariga no hotel e o policial grosseiro que a levou para a casa dos pais. Mal se instalaram e um rebanho de cegos entrou na camarata. Todas as camas foram ocupadas.
Na madrugada, o ladrão resolveu ir ele próprio pedir ajuda aos guardas, imaginando que estes sentiriam pena ao vê-lo naquele estado lamentável. Rastejou, cheio de dores, até o portão. Ao ouvir os ruídos, o soldado foi verificar o que estava acontecendo, assustou-se com o cego e deu-lhe um tiro no meio da cara. O sargento, acordado com o barulho da rajada, ordenou que quatro cegos viessem recolher o corpo.
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