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quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Rápida Utopia – De Umberto Eco


Texto publicado em 1993.
Nosso século está doente carregado de saberes fragmentos, incapaz de reconhecer seus inimigos. O diagnostico do autor é curto: respiramos neurastenia e vivemos em busca de uma cura para nosso mal, tudo em altíssima velocidade . Ação à distância, velocidade, comunicação, linha de montagem, triunfo das massas, Holocausto: através das metáforas e das realidades que marcaram esses 100 últimos anos, aparece à verdadeira doença do progresso… Primeira regra: não se pode julgar um século, sobretudo alguns anos antes do seu fim, sem recolocá-lo na devida perspectiva histórica. Pensem no que teria respondido um geógrafo do século XV se lhe tivesse pedido uma síntese de seu século em 1° de janeiro de 1490. Ou no que teríamos respondido se nos tivesse pedido um balanço de 1989 um mês antes da queda do Muro de Berlim e da revolução da Romênia. Segunda regra: quem julga? O julgamento de um cidadão do mundo ocidental é diferente do de um biafrense que morre de fome. Mas, se essa regra é válida para casa século, ela o é um pouco menos para o nosso. Para o bem ou para o mal, o modelo ocidental se impõe gradativamente sobre uma grande parte do planeta. Um camponês chinês esta hoje, para o bem ou para o mal, mais próximo de um camponês francês do que estava há dois séculos. Terceira regra: não se pode avaliar emocionalmente um século estando dentro dele e sem proceder a comparações estatísticas. O número de pessoas que hoje morrem de fome no mundo causa horror. Mas o número de pessoas que morreriam de fome no século passado também nos devem causar horror, sobretudo se o comparamos à população mundial da época. Segundo relatos de vários legados pontifícios, o príncipe Vlad Tepes de Valaquia (cognominado Drácula), que empalava mulheres e crianças enquanto se divertia com seus cortesãos, havia ordenado, só no ano de 1475, o massacre de 100.000 pessoas. Considerando que seu principado contava com 500.000 habitantes, é como se hoje o governo italiano ordenasse o massacre de 10.000 milhões de cidadãos. O Século que chega ao fim é o que presenciou o Holocausto, Hiroshima, os regimes dos Grandes Irmãos e dos Pequenos Pais, os massacres do Camboja e assim por diante. Não é um balanço tranquilizador. Mas, como veremos o horror desses acontecimentos não reside apenas na quantidade, que, certamente, é assustadora. Numa Europa com apenas algumas dezenas de milhões de habitantes, os pogrons das Cruzadas, as cidades saqueadas durante a Guerra dos Trinta Anos representam um número de vítimas que deveria deixar-nos sem voz. Ainda mais que os responsáveis eram honrados como heróis tanto nos livros de História quanto nos relatos suntuosos que fazem a grandeza da história da arte. Pode-se julgar um século pela distância existente entre seu sistema de valores e sua prática cotidiana. Como se sabe, a hipocrisia permite dispor compromissos entre o reconhecimento teórico dos valores e sua violação. Ora, nosso século talvez tenha sido menos hipócrita que os outros. Ele enunciou regras de convivência; certamente as violou, mas moveu e move processos públicos contra essas violações. Isso não impede que elas se repitam, mas teve alguma influência sobre nossos comportamentos cotidianos e sobre as probabilidades de um grande número de cidadãos, sobretudo no mundo ocidental, viver por mais tempo, evitando abusos de poder de toda ordem. Hoje posso andar pela rua sem me fazer matar por alguém que queira manter sua trajetória na mesma calçada que a minha, e sei que meus filhos não receberão cacetadas do filho de um duque como meio de aprendizagem do poder. Indivíduos prepotentes tentam ainda expulsar uma mulher negra do ônibus, mas a opinião pública os condena: ha apenas dois séculos teria pensado agir como honesto cidadão se tivesse investido uma parte de nosso pecúlio numa empresa que teria vendido essa mulher como escrava aos Estados Unidos. Parece que foi o que aconteceu com o Voltaire. Vejamos agora os aspectos ambíguos deste século. Ele terá sido o século das massas. Para o bem e para o mal. Os direitos das massas foram reconhecidos: é muito importante que um cidadão que não possua terra ou não tenha prerrogativa eclesiástica possa ter o direito à palavra, à contestação, ao voto, exercer um cargo político, e não avaliarmos o que isso representa porque não vivemos em séculos que era normal um artesão morar num casebre imundo e um senhor que não tinha dinheiro para pagar-lhe mandar seus servidores baterem nele. Experimente tratar a murros seu encanador que exige pagamento e compreenderá que alguma coisa mudou. As conquistas morais e políticas desse século, graças às quais não pode mais engravidar impunemente uma camponesa só porque se é donos de terras se pagam hoje pelo sistema de estrelato: aquela que, em outros tempos teria sido uma camponesa indefesa é hoje assediada com a promessa de aparecer nua na capa de uma revista famosa. Nosso século é o da aceleração tecnológica e científica, que se operou e continua operar em ritmos antes inconcebíveis. Foram necessários milhares de anos para passar do barco a remo à caravela ou da energia eólica ao motor de explosão; e em algumas décadas se passou do dirigível ao avião, da hélice ao turborreator e daí ao foguete interplanetário. Em algumas dezenas de anos, assistiu-se ao triunfo das teorias revolucionárias de Einstein e a seu questionamento. O custo dessa aceleração da descoberta é a hiperespecialização. Estamos em via de viver a tragédia dos saberes separados: quanto mais os separamos, tanto mais fácil submeter à ciência aos cálculos do poder. Esse fenômeno esta intimamente ligado ao fato de ter sido nesse século que os homens colocaram mais diretamente em questão a sobrevivência do planeta. Um excelente químico pode imaginar um excelente desodorante, mas não possui mais o saber que lhe permitiria dar-se conta de que seu produto irá provocar um buraco na camada de ozônio. O equivalente tecnológico da separação de poderes foi à linha de montagem. Nesta, cada um conhece apenas uma fase do trabalho. Privado da satisfação de ver o produto acabado, cada um é também liberado de qualquer responsabilidade. Poderia produzir, e isso ocorre com frequência, venenos sem que o soubesse. Mas a linha de montagem permite também fabricar aspirina em quantidade para o mundo todo. E rápido. Tudo se passa num ritmo acelerado, desconhecido dos séculos anteriores. Sem essa aceleração, o Muro de Berlim poderia ter durado milênios, como a Grande Muralha da China. É bom que tudo se tenha resolvido no espaço de trinta anos, mas pagamos o preço dessa rapidez. Poderíamos destruir o planeta num dia. Nosso século foi da comunicação instantânea. Hernán Cortés pôde destruir uma civilização e, antes que a notícia se espalhasse, teve tempo para encontra justificativas a seus empreendimentos. Hoje, os massacres da Praça Celestial, em Beijing, tornaram-se atualidade no momento mesmo em que se desenrolam e provocam a reação de todo o mundo civilizado. Mas informações simultâneas em excesso, provenientes de todos os pontos do globo, produzem um hábito. O século da comunicação transformou a informação em espetáculo. Arriscamo-nos a confundir a todo instante a atualidade e o divertimento. Nosso século presenciou o triunfo da ação à distância. Hoje, aperta-se um botão e um foguete é lançado a Marte. A ação à distância salva numerosas vidas, mas irresponsabiliza o crime. Ciência, tecnologia, comunicação, ação à distância, princípio da linha de montagem: tudo isso tornou possível o Holocausto. A perseguição racial e o genocídio não foram uma invenção de nosso século e herdamos do passado o hábito de brandir a ameaça de um complô judeu para desviar o descontentamento dos explorados. Mas o que torna tão terrível o genocídio nazista é que foi rápido tecnologicamente eficaz e buscou o consenso servindo-se das comunicações de massa e do prestígio da ciência. Foi fácil fazer passar por ciência uma teoria pseudo científica, porque, num regime de separação dos saberes, o químico que aplicava os gases asfixiantes não julgava necessário ter opiniões sobre a antropologia física. O Holocausto foi possível porque se podia aceitá-lo e justificá-lo sem ver seus resultados. Além de um número, afinal restrito, de pessoas responsáveis e de executantes diretos (sádicos e loucos), milhões de outros puderam colaborar à distância, realizando cada qual um gesto que não tinha nada de aterrador. Assim, esse século soube fazer do melhor de si o pior de si. Tudo o que aconteceu de terrível a seguir não foi senão repetição, sem grande inovação. O século do triunfo tecnológico foi também o da descoberta da fragilidade. Um moinho de vento podia ser reparado, mas o sistema do computador não tem defesa diante da ma intenção de um garoto precoce. O século esta estressado porque não sabe de quem se deve defender nem como: somos demasiado poderosos para poder evitar nossos inimigos. Encontramos o meio de eliminar a sujeira, mas não o de eliminar resíduos. Porque a sujeira nascia da indigência, que podia ser reduzida, ao passo que os resíduos (inclusive os radioativos) nascem do bem-estar que ninguém quer mais perder. Eis porque nosso século foi o da angústia e o da utopia de curá-la. Com um superego mais forte, a humanidade se embaraça num mal que conhece perfeitamente, confessa-o em público, tenta purificações expiatórias às quais se juntam as Igrejas e os governos e repete o mal porque a ação à distância e linha de montagem impedem de identificá-la no inicio do processo. Espaço, tempo, informação, crime, castigo, arrependimento, absolvição, indignação, esquecimento, descoberta, crítica, nascimento, longa vida, morte… tudo em altíssima velocidade. A um ritmo de stress. Nosso século é o do enfarte.___________
___________ -Umberto Eco Nascido em Alessandria, Itália, em 1932. Professor de semiótica na Universidade de Bolonha, ensaísta de renome mundial, dedicou-se a temas como estética, semiótica, filosofia da linguagem, teoria da literatura e da arte e sociologia da cultura. Autor de artigos de opinião nos jornais Espresso e La Repubblica, estreou como romancista com O Nome da Rosa, em 1980. Depois do imenso sucesso colhido na Itália e em todo o mundo, escreveu O Pêndulo de Foucault (1988), A Ilha do Dia Anterior (1994) e Baudolino (2000). Entre suas obras ensaísticas destacam-se Obra Aberta (1962), Apocalípticas e Integradas (1964), A Estrutura Ausente (1968), As Formas do Conteúdo (1971), Tratado Geral de Semiótica (1975), Seis Passeios pelos Bosques da Ficção (1994) e Sobre a Literatura (2003). Seus textos jornalísticos estão reunidos em Diário Mínimo (1963), O Segundo Diário Mínimo (1990) e A Coruja de Minerva (2000).

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